segunda-feira, 16 de novembro de 2009

TJ/RS - Acórdão (Lei Penal mais benigna / estupro e atentado violento ao pudor / Lei 12.015)


Caros,
inicialmente, peço escusas pela falta de atualização constante do BLOG. Além da correria diária, o final do semestre chegando, a viagem para Londrina/PR para prestigiar o casamento de amigos no início do mês, a viagem da semana passada para Cuiabá/MT para trabalharmos na sede do Grupo IUNI, oportunidade em que debatemos a nova matriz curricular e assuntos correlatos com todos os Coordenadores dos Cursos de Direito das unidades do IUNI, as aulas e os eventos, está chegando a época das defesas das monografias! Correria, correria e correria... vamos lá tchê!
Então, hoje, aproveito para trazer um acórdão da 6a. Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, de relatoria do Des. Nereu José Giacomolli, que esteve conosco na pós-graduação em Ciências Criminais da UNIRON nesse último fim de semana, sobre a retroatividade da lei penal mais benigna, no que tange à edição da Lei 12.015/2009.
Vale a pena a leitura para compreensão da matéria de Direito Penal I e firmação da jurisprudência sobre o assunto.
Abraços e boa semana,

Prof. Matzenbacher


APELAÇÃO. CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL. ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. SUPERVENIÊNCIA Da LEI 12.015/09, MAIS BENÉFICA.

1. A lei mais favorável aplica-se, inclusive, aos processos com trânsito em julgado, ou aos de execução penal, pois a potestade punitiva atinge, inclusive, o cumprimento total da sanção penal, constituindo-se, a aplicação da lei mais benigna, em um efeito limitar (arts. 5º, XXXIX, XL, da CF, 1º e 2º do CP).

2. A delimitação da legalidade penal ampla, na medida em que sai da esfera estritamente formal do nullum crimen, nulla poena, sine lege (art. 5º, XXXIX, da CF) propiciador da incidência da potestade punitiva, para atingir, proteger e garantir os direitos fundamentais (arts. 1º, III, 5º, XLI, XXXV e LXVIII, da CF). O significado material da legalidade, a sua essência, está na própria evolução histórica do princípio, isto é, vincula-se à limitação do exercício do poder (inclusive na potestade punitiva), à divisão das funções públicas entre os poderes do Estado, ao pacto social que sustenta politicamente a convivência humana e à soberania popular legitimadora das normas penais.

3. A Lei 12.015/09 inseriu, numa mesma disposição típica, as condutas anteriormente previstas em dois tipos penais, consideradas crimes diversos: estupro e atentado violento ao pudor. Discutia-se, até então, a forma de concurso na configuração dos dois tipos penais.

4. Dessa nova situação penal, segundo o legislador, infere-se que o delito de estupro passou a ser constituído não apenas pelo constrangimento, mediante violência ou grave ameaça, à prática de conjunção carnal, mas também pelo ato de constranger a vítima a praticar ou permitir que com ela se pratique atos libidinosos diversos da conjunção carnal. Assim, quando a conduta do agente se insere na mesma situação fática espacial e temporal, mesmo que se decomponha em mais de um ato, estaremos diante de crime único.

5. A possibilidade de reconhecimento de crime único, por ser mais benéfica, retroage e tem aplicação imediata.

6. No caso concreto, em que ao acusado são imputadas três condutas diferentes praticadas contra a mesma vítima e em uma mesma situação de fato (constrangimento à prática de conjunção carnal, à prática de ato libidinoso diverso de conjunção carnal [sexo oral] e a permitir que com a vítima fossem praticados atos libidinosos diversos da conjunção carnal [coito anal]), impõe-se o reconhecimento de um único delito de estupro. Com isso, não está afastada a hipótese de reconhecimento da continuação ou do concurso de crimes, dependendo da situação fática de cada caso concreto.

ACOLHIDA A PRELIMINAR DE APLICAÇÃO DA LEI MAIS BENIGNA.

NO MÉRITO, APLICARAM A PENA SEGUNDO AS NOVAS DISPOSIÇÕES TÍPICAS E PENOLÓGICAS.

PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO PELA APLICAÇÃO DA LEI MAIS BENIGNA.

Apelação Crime

Sexta Câmara Criminal

Nº 70024829517

Comarca de Panambi

M.P.

..

APELANTE/APELADO

C.R.M.F.

..

APELANTE/APELADO

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos.

Acordam os Desembargadores integrantes da Sexta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em preliminar de oficio, em aplicar a lei nova mais benéfica ao caso sob exame (Lei n.12.015/2009), e, no mérito, também, à unanimidade, em dar cumprimento à decisão do Superior Tribunal de Justiça, e em fixar a pena privativa de liberdade definitiva do réu C.R.M.F. em sete anos e oito meses de reclusão, a ser cumprida no regime inicial fechado, em razão das circunstâncias do artigo 59 do Código Penal, mantidas as demais cominações do acórdão." Na preliminar, o Dr. Roberto Klaus Radke proferiu parecer oral pelo seu acolhimento.

Custas na forma da lei.

Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores Des. Aymoré Roque Pottes de Mello (Presidente) e Des. Mario Rocha Lopes Filho.

Porto Alegre, 24 de setembro de 2009.

DES. NEREU JOSÉ GIACOMOLLI,

Relator.

RELATÓRIO

Des. Nereu José Giacomolli (RELATOR)

O Ministério Público ofereceu denúncia contra CARLOS ROBERTO DE MOURA DE FREITAS, dando-o como incurso nos artigos 213 e 214, na forma do artigo 69, caput, e do artigo 255, § 1º, I, todos do Código Penal, pelo seguinte fato delituoso:

“No dia 26 de abril de 1997, durante a madrugada, em uma estrada vicinal, na Linha Jaciandi, nesta cidade, o denunciado, Carlos Roberto de Moura de Freitas, no interior do veículo Gol que dirigia, constrangeu a vítima Carine Tischer, a praticar com ele conjunção carnal, mediante violência física, consistente em socos, tapas, bem como batendo a cabeça da vítima contra o veículo em que se encontravam, provocando nela as lesões corporais descritas no Auto de Exame de Corpo de Delito da fl. 6.

Além disso, o denunciado, nas mesmas condições de tempo e lugar, constrangeu a vítima a praticar com ele atos libidinosos diversos da conjunção carnal, consistente em introduzir o pênis no ânus da ofendida, constrangendo-a ao sexo anal, além de também obrigá-la ao sexo oral, tudo mediante violência física contra a vítima Carine Tischer, que era agredida a socos pelo denunciado quando tentava esboçar qualquer reação ou negativa.”

Finda a instrução processual, sobreveio sentença de procedência da denúncia, condenando o acusado como incurso nos artigos 213, caput, e 214, caput, na forma do artigo 71, caput, todos do Código Penal, impondo-lhe pena de 10 anos e 06 meses de reclusão, a ser cumprida em regime fechado (fls. 333 a 337).

Em face dessa decisão, as partes interpuseram recursos de apelação.

O Ministério Público postulou, em suas razões recursais, o reconhecimento do concurso material entre os delitos de estupro e de atentado violento ao pudor (fls. 353 a 358).

O réu, por sua vez, pediu a extinção da sua punibilidade, com base no artigo 107, VIII, do Código Penal, ou a sua absolvição, com fulcro no artigo 386, VI, do Código de Processo Penal (fls. 385 a 414).

Por ocasião do julgamento dos recursos de apelação, esse Órgão Colegiado, à unanimidade, rejeitou as preliminares, negou provimento ao recurso do Ministério Público (mantendo, portanto, a continuidade delitiva) e deu parcial provimento ao recurso do réu, apenas para reduzir a pena imposta para 07 anos e 07 meses de reclusão, mantido o regime inicial fechado e afastada a incidência da Lei 11.464/07 (fls. 446 a 464).

Em face dessa decisão, o Ministério Público interpôs, tempestivamente, Recurso Especial, com base no artigo 105, III, a e c, da Constituição Federal (fls. 471 e 472), pugnando, em suas razões recursais, o reconhecimento do concurso material entre os delitos de estupro e atentado violento ao pudor (fls. 473 a 486).

O réu apresentou contrarrazões (fls. 493 a 500), e o recurso foi admitido (fls. 502 a 504).

O Superior Tribunal de Justiça, na forma do artigo 557, § 1º - A, do Código de Processo Civil, c/c artigo 3º, do Código de Processo Penal, deu provimento ao recurso especial para reconhecer o concurso material entre os delitos de estupro e de atentado e violento ao pudor, determinando viessem os autos ao Tribunal de origem para que fossem promovidas as necessárias alterações na pena aplicada (fls. 513 a 516).

Transitada em julgado, baixaram os autos.

É o relatório.

VOTOS

Des. Nereu José Giacomolli (RELATOR)

Eminentes colegas:

O Superior Tribunal de Justiça, ao julgar Recurso Especial interposto pelo Ministério Público, reconheceu, no caso, a ocorrência de concurso material entre os delitos de estupro e atentado violento ao pudor, imputados ao réu na denúncia, determinando, por isso, o retorno dos autos para adequação da pena imposta.

Antes, porém, de passar à aplicação da pena, entendo necessário observar o disposto na Lei 12.015/09, que alterou o título VI da parte especial do Código Penal, referente aos crimes contra a dignidade sexual, tipificando como delito de estupro, no artigo 213, não apenas a conduta de constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal, mas também a de praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso, conduta essa que, até então, era considerada crime de atentado violento ao pudor, tipificado no artigo 214 do Código Penal, agora expressamente revogado.

EM PRELIMINAR

Cabe, prima facie, suscitar, de ofício, a possibilidade de aplicação da lei mais favorável ao imputado, sem ferir a decisão do STJ. Isso em razão da superveniência de legislação mais benéfica ao acusado, uma vez comparada à decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, já transitada em julgado e a qual se deve dar cumprimento.

O réu foi denunciado pelos crimes de atentado violento ao pudor e estupro, em concurso material, porém condenado por ambos os delitos em continuidade delitiva, decisão essa que restou reformada pelo Superior Tribunal de Justiça, com o reconhecimento do concurso material.

Ocorre que a nova redação do artigo 213 do Código Penal, alterada pela Lei 12.015/09, de 07.08.2009, (posterior, portanto, à decisão do STJ, proferida em 16.06.2009 – fl. 516) passou a dispor:

“Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.”

Dessa nova redação, depreende-se que o delito de estupro passou a ser constituído não apenas pelo constrangimento, mediante violência ou grave ameaça, à prática de conjunção carnal, mas também pelo ato de constranger a vítima a praticar ou permitir que com ela se pratique atos libidinosos diversos da conjunção carnal, o que, antes da Lei 12.015/09, constituía elementar normativa do delito de atentado violento ao pudor.

A isso, acrescenta-se ter sido o artigo 214 do Código Penal revogado expressamente pelo artigo 7º da Lei 12.015/09.

Daí a conclusão de que, com o advento da Lei 12.015/09, estupro e atentado violento ao pudor passaram a ser considerados um mesmo crime, agora nominado simplesmente estupro, e caracterizado pela multiplicidade de ações descritas no atual tipo penal (constranger à prática de conjunção carnal, constranger a praticar ato libidinoso diverso de conjunção carnal ou constranger a vítima a permitir que com ela se pratique ato diverso da conjunção carnal), bastando a ocorrência de uma delas para a consumação do crime.

Essa nova redação do artigo 213 do Código Penal, já em vigor, tornou o tipo penal de estupro um crime de ação múltipla, cuja consumação pode se dar tanto pela prática de uma única conduta dentre as previstas como proibidas, quanto pela prática de todas elas, havendo, sempre que praticadas contra uma mesma vítima e em um mesmo contexto fático, um crime único.

Assim, e como ocorreu no caso concreto, em que ao acusado são imputadas três condutas diferentes praticadas contra a mesma vítima e em uma mesma situação de fato (constrangimento à prática de conjunção carnal, à prática de ato libidinoso diverso de conjunção carnal [sexo oral] e a permitir que com a vítima fossem praticados atos libidinosos diversos da conjunção carnal [coito anal]), impõe-se o reconhecimento de um único delito de estupro.

Essa situação decorrente da entrada em vigor Lei 12.015/09, é inegável, afigura-se mais favorável ao acusado, antes condenado pela prática dos delitos de atentado violento ao pudor e estupro em concurso material, o que certamente resultaria em um apenamento infinitamente maior.

Por isso, embora a existência de decisão transitada em julgado, proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, em que fora reconhecido o concurso material, entendo ser o caso de aplicação do artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal, que dispõe:

A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.

Não se trata, pois, de desobediência à decisão da Corte Superior, mas de aplicar, ao caso concreto, o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica.

A retroatividade ou não da lei vincula-se ao princípio da legalidade, motivo por que se faz necessário enfocar a diferença entre legalidade formal e material.

A concepção formalista informa que um fato somente constituirá uma infração criminal quando assim estiver previsto em uma norma legal, no momento em que foi praticado e, ainda, ao sujeito condenado se aplicará a espécie e a quantidade de pena prevista no tipo penal (arts. 5º, XXXIX, da CF e 1º do CP). Por isso, ninguém pode ser castigado por um fato que, no momento da conduta, não esteja previsto num preceito normativo como infração criminal, por mais nocivo, cruel ou hediondo que seja. Ao fato praticado somente pode ser aplicada a espécie e a quantidade de pena possíveis, previstas no tipo penal transgredido, por mais ínfima que pareça.

A adoção do princípio da legalidade não induz unicamente à incorporação a um sistema jurídico de normas legais escritas, claras, precisas (concepção formal), pois o Estado também pode atuar legalmente, implantando uma política criminal do terror e vingativa com suporte em disposições legais. Além da intrínseca “debilidade política” (FERRAJOLI, 1977, p. 23) a concepção formal da reserva legal permite que se considere infração criminal uma norma penal ilegítima, porque originária do Poder Executivo ou do Poder Judiciário.

Por isso, a delimitação da legalidade é mais ampla; sai da esfera estritamente formal do nullum crimen, nulla poena, sine lege (art. 5º, XXXIX, da CF) propiciador da aplicação do ius puniendi, para atingir, proteger e garantir os direitos fundamentais (arts. 1º, III, 5º, XLI, XXXV e LXVIII, da CF). O significado material da legalidade, a sua essência, está na própria evolução histórica do princípio, isto é, vincula-se à limitação do exercício do poder (inclusive o poder de punir), à divisão das funções públicas entre os poderes do Estado, ao pacto social que sustenta politicamente a convivência humana e à soberania popular legitimadora das normas penais.

A criação, aplicação e execução das leis criminais estão limitadas pelas disposições normativas criadas pelo Poder Legislativo, quem detém a legitimidade da cidadania para dizer quais são os fatos que constituem uma infração criminal e qual a pena aplicável nas hipóteses de transgressão do preceito criminal (art. 22, I, da CF). A incidência da sanção penal ocorrerá num processo criminal conduzido por um órgão jurisdicional predeterminado legalmente. Assim, a essência da legalidade penal está na legitimidade e na legitimação do exercício do poder de criar a lei e de aplicá-la com um sentido de garantia à cidadania.

Assim, o princípio da legalidade, ademais de outorgar segurança a um ordenamento jurídico, constitui-se em uma garantia protetiva dos jurisdicionados frente ao ius puniendi. Desta forma, os cidadãos podem saber de antemão, não qual a conduta que está proibida, qual a sanção e quais são seus limites, mas principalmente que o acusador e o julgador não poderão, sponte sua, determinar os tipos criminais, as penas ou as espécies de medidas de segurança (art. 5º, XLVI e XLVII, da CF).

É esse critério material que garante que os limites da liberdade dos indivíduos sejam os mesmos, e se apliquem a todos, sem exceção, e que, ao mesmo tempo, se determinem com precisão, tanto para os cidadãos, quanto para as instituições. Ainda, neste critério essencial se concentram as esperanças de que tanto o sistema como a aplicação da justiça penal sejam transparentes, controláveis e sinceros (HASSEMER, 1999, p. 24 e 25).

Consigno que estas garantias interferem na descrição típica (garantia criminal), na delimitação da sanção (garantia penal), no devido processo constitucional (5º, LIII, LIV, LV, da CF, v.g), e também no cumprimento da sanção criminal (garantia de execução).

Um dos efeitos da adoção do princípio da legalidade é a exclusão da retroatividade (art. 5º, XL, da CF), que se aplica ao legislador e, também, ao órgão judicial, segundo o adágio nullum crimen, nulla poena, sine lex praevia, informador da proibição da criação de leis ad hoc, ou para atender a reclamos momentâneos, conduzidos por interesses de certos segmentos sociais atrelados, como regra, a fins unicamente eleitoreiros ou econômicos. Assim, os fatos anteriores à vigência da lei não podem ser atingidos por uma lei posterior mais severa, prejudicial ao autor, ou seja, in mallam partem, por vontade do legislador ou dos magistrados.

A retroatividade que se admite no âmbito criminal é a in bonam partem, nas hipóteses de existência de uma lei posterior mais benéfica ao autor do fato, que a anterior. Neste conflito de normas, aplica-se a lex mitior para não piorar a situação do acusado. Assim, é mais benigna, por exemplo, a lei penal descriminalizadora e todas aquelas que atenuam a situação do autor do fato punível. Pode ser afirmado serem mais benéficas as leis que ampliam o âmbito da licitude penal ou do status libertatis, restringindo o ius puniendi.

Uma disposição legal anterior mais benévola ao autor do fato aplica-se a este, mesmo que uma norma posterior disponha diferentemente. A este fenômeno se denomina ultra-atividade. Entretanto, os fatos cometidos sob a vigência de uma lei temporal ou excepcional serão julgados de acordo com suas disposições normativas (art. 3º do CP), pois “a derrogação da lei temporal responde ao desaparecimento do motivo de sua criação e não a uma alteração da concepção jurídica” (JESCHECK, 1993, p. 126). Além disso, não existe uma modificação na valoração jurídica das condutas que estão matizadas pelas circunstâncias extraordinárias, motivadoras da regulamentação excepcional (COBO DE ROSAL,1999, p. 204 e 205).

A lei mais favorável aplica-se, inclusive, aos processos com trânsito em julgado, ou aos de execução penal, pois a potestade punitiva estende-se até o cumprimento total da sanção penal, e a aplicação da lei mais benigna é um efeito da legalidade, limitador da mesma (art. 2º do CP). A lei mais benéfica poderá atingir os condenados que cumpriram a pena? Uma interpretação restritiva, formalista e favorável a um Direito Penal de primeira ratio induz ao reconhecimento do limite máximo da retroatividade às hipóteses em que o condenado esteja cumprindo a pena. Por outro lado, o conteúdo material faz com que a retroatividade benéfica seja aplicada aos processos em que tenha havido o cumprimento da pena.

É indubitável que o princípio da legalidade, mesmo em sua concepção formal, “limita a intervenção estatal” (HASSEMER, 1984, p. 313) e “serve para evitar uma punição arbitrária e incalculável, ou baseada numa lei imprecisa ou retroativa” (ROXIN, 1999, p. 137), ou seja, como uma garantia ao indivíduo. Também, que a legalidade penal é um princípio constitucional, limitativo do poder do legislador, na medida em que deverá formular preceitos claros, precisos, determinados e de acordo com a Constituição, limitativos do poder jurídico do órgão acusador, que não poderá transpor as barreiras legais autorizadoras do exercício da pretensão acusatória, e limitador do poder jurídico dos Juízes e dos Tribunais, os quais estão impedidos de definir tipos penais ou de aplicar sanções criminais que não existiam no momento da conduta, garantindo-se, assim, a proteção dos direitos e das liberdades fundamentais.

O pensamento jurídico-penal tradicional, segundo Taipa de Carvalho, esqueceu-se de que na execução das penas, especialmente da pena privativa de liberdade, há normas que podem afetar os direitos individuais fundamentais (TAIPA DE CARVALHO, 1997, p. 260).

A individualização da sanção não se esgota no momento da dosimetria da pena, mas segue seu curso legal até o total cumprimento da condenação, com a possibilidade de modificação do regime inicialmente fixado, substituição da pena, livramento condicional, etc. (art. 5ª, XLVIII, XLIX e L, da CF). A primeira etapa da individualização da pena é realizada pelo legislador, no processo de tipificação legal. A seguinte etapa compete ao acusador, no momento em que deduz uma pretensão acusatória, expressa claramente ou inferida da descrição dos fatos com aparência de infração criminal, estendendo-se até a delimitação definitiva das alegações finais ou dos debates orais finais, antes da fase decisória.

É certo que o ápice do processo de individualização da pena é atingido com a individualização jurisdicional, após a emissão de um juízo condenatório, de sua concatenação com a pretensão acusatória e com a resistência processual defensiva (art. 68 do CP). Nesse processo de medição da pena, as duas partes podem ter deduzido pretensões ou resistências num plano principal ou subsidiário, em relação à dosimetria legal.

Porém, o processo de individualização judicial da sanção se aplica também à fase de execução ou de cumprimento da pena, de responsabilidade exclusiva do órgão jurisdicional, ou dividida com o Poder Executivo. E, no processo de individualização pena privativa de liberdade se inclui o regime de cumprimento da pena.

Portanto, a aplicação da lei mais benigna – retroatividade ou irretroatividade da lei – relaciona-se com o princípio da legalidade penal, do qual se inferem, além da garantia jurisdicional, as garantias criminal, penal e de execução penal ou penitenciária e a essência do princípio da legalidade, a partir do topos hermenêutico constitucional, radica na garantia de proteção dos direitos fundamentais do jurisdicionado frente à incidência do ius puniendi do Estado e na limitação do direito de punir do Estado.

Isso não significa que todas as hipóteses de prática dos atos constantes no artigo 213 do Código Penal se constituem em crime único. Isso dependerá do contexto delitivo, mormente das circunstâncias fáticas da prática desses atos.

Isso posto, voto, em preliminar suscitada de ofício, por aplicar ao caso concreto, a lei nova mais benéfica ao acusado, reconhecendo a existência de um único delito de estupro, tal como tipificado na atual redação do artigo 213 do Código Penal.

NO MÉRITO

Não mais se discute o juízo condenatório, a existência de excludentes de tipicidade, ilicitude ou de culpabilidade, na medida em que o veredicto condenatório foi mantido na apelação e permaneceu intocável pela decisão do Superior Tribunal de Justiça.

Como, no caso dos autos, há crime único, pela aplicação da lei nova e pelas circunstâncias fáticas, passo a examinar a pena.

O acusado não possuía, ao tempo do crime, antecedentes criminais. A conduta social e a personalidade são impassíveis de valoração negativa. Em relação aos motivos do delito, nada há de relevante a observar, além daqueles inerentes à espécie. As circunstâncias do crime são de significativa reprovabilidade, pois a vítima era cunhada do réu e este consumou todas as três ações proibidas no tipo penal (constrangimento à prática de conjunção carnal, à prática de ato libidinoso diverso de conjunção carnal [sexo oral] e a permitir que com a vítima fossem praticados atos libidinosos diversos da conjunção carnal [coito anal]). As consequências do delito, da mesma forma, são graves, pois restou lesionada a vítima, conforme laudo pericial que apontou o emprego de violência real. Por fim, observo não ter a ofendida contribuído para o crime.

Diante dessas considerações, reputo ser de alto grau a reprovabilidade da conduta do acusado, em especial pelas circunstâncias e consequências do crime. Em se tratando de crime único, após a Lei 12.015/09, entendo que o número de condutas praticadas pelo réu deve ser considerado na avaliação da reprovabilidade da conduta.

Isso posto, fixo a pena-base em 07 anos e 08 meses de reclusão, patamar que, na ausência de circunstâncias modificadoras, vai tornado definitivo.

O regime inicial de cumprimento de pena, por força da análise das circunstâncias judiciais do artigo 59 do Código Penal, é fixado como sendo o fechado.

Isso posto, voto, em preliminar, pela aplicação da lei nova mais benéfica ao caso sob exame, e, no mérito, em cumprimento à decisão do Superior Tribunal de Justiça, em fixar a pena privativa de liberdade definitiva do réu C.R.M.F. em sete anos e oito meses de reclusão, a ser cumprida no regime inicial fechado, em razão das circunstâncias do artigo 59 do Código Penal, mantidas as demais cominações do acórdão.

Des. Mario Rocha Lopes Filho (REVISOR) - De acordo com o Relator na preliminar e no mérito.

Des. Aymoré Roque Pottes de Mello (PRESIDENTE) - De acordo com o Relator na preliminar e no mérito.

DES. AYMORÉ ROQUE POTTES DE MELLO - Presidente - Apelação Crime nº 70024829517, Comarca de Panambi: "À UNANIMIDADE, EM PRELIMINAR DE OFICIO, DECIDIRAM PELA APLICAÇÃO DA LEI NOVA MAIS BENÉFICA AO CASO SOB EXAME (LEI N.12015/2009), E, NO MÉRITO, TAMBÉM À UNANIMIDADE, EM CUMPRIMENTO À DECISÃO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, E FIXARAM A PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE DEFINITIVA DO RÉU C.R.M.F. EM SETE ANOS E OITO MESES DE RECLUSÃO, A SER CUMPRIDA NO REGIME INICIAL FECHADO, EM RAZÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS DO ARTIGO 59 DO CÓDIGO PENAL, MANTIDAS AS DEMAIS COMINAÇÕES DO ACÓRDÃO. NA PRELIMINAR, O DR. ROBERTO KLAUS RADKE PROFERIU PARECER ORAL PELO SEU ACOLHIMENTO."

Julgador(a) de 1º Grau: MICHELE SCHERER BECKER