quarta-feira, 24 de abril de 2013

Brasileiro acha fácil "dar jeitinho" e desobedecer leis

Realmente, é MUITO PREOCUPANTE o que aponta a pesquisa da Escola de Direito da FGV/SP... Bah tchê... Enfim, com isso, três constatações iniciais chamaram minha atenção: 1a) SHUTERLAND assiste razão no Brasil, cada vez mais, com sua teoria da "associação diferencial"; 2a) o controle social informal, baseado na preocupação do que os outros vão pensar sobre eu, exerce uma função positiva; 3a) a estigmatização dos pobres é inversamente proporcional ao que realmente fazem.
Vou estar em Porto Velho - RO para ministrar o Módulo de CRIMINOLOGIA na pós-graduação em Direito Penal e Processual Penal da UNIRON nesse final de semana, e essa pesquisa já vai para a pauta de discussões.
PENSEMOS!
Abraços,



Brasileiro acha fácil "dar jeitinho" e desobedecer a leis, diz pesquisa

24/04/2013 - SÃO PAULO 

Desobedecer à lei é fácil, ainda mais para um povo acostumado a "dar um jeitinho" para tudo. Essa ideia do imaginário popular ganhou comprovação em estudo da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (Direito GV) divulgado ontem, que procurou entender a percepção do brasileiro em relação ao respeito das normas e às ordens de autoridades. O estudo mostra que 82% dos brasileiros reconhecem facilidade em descumprir leis no Brasil, e que 79% acreditam que, sempre que podem, as pessoas apelam para o "jeitinho" para evitar cumprir as normas legais. Além disso, 54% acham que existem poucas razões para obedecer às leis no país.

- As pessoas não têm a sensação de que é importante, para a coletividade, obedecer à lei. Elas acham que cumprir a lei não vale a pena, não percebem que é importante, independentemente de seu ganho individual e imediato. Elas não encontram razões e acham que, em geral, os outros não obedecem - disse Luciana Gross Cunha, coordenadora da pesquisa.

Ao mesmo tempo, porém, segundo o estudo, 80% dos entrevistados consideram que alguém que desobedece à lei é malvisto pelas pessoas.

Os pesquisadores entrevistaram 3.300 pessoas em oito estados, entre outubro de 2012 e março de 2013. Eles criaram o Índice de Percepção do Cumprimento da Lei (IPCLBrasil), que leva em conta se as pessoas cumprem a lei, se enxergam a possibilidade de punição e repreensão por amigos no caso de descumprimento, e se acham que certas condutas ilegais são realmente erradas. No país, o IPCL foi de 7,3 numa escala de zero a 10 (sendo 10 o total comprometimento com o cumprimento da lei).

Os especialistas analisaram, por exemplo, como as pessoas veem a probabilidade de serem punidas se cometerem delitos como pequenos furtos, direção após consumo de bebida alcoólica, pagamento de propina, estacionamento irregular, despejo de lixo em local proibido, fumo em área não permitida, barulho, uso de carteira de estudante falsa, travessia de rua fora da faixa de pedestres e compra de CDs piratas. E perguntaram se os entrevistados haviam cometido esses atos nos últimos meses.

Os entrevistados acham que é mais provável haver punição e repreensão por amigos se eles cometerem pequenos furtos em lojas do que por pagarem propina a funcionário público para evitar multas (conduta que 3% admitiram ter cometido) ou usarem carteira de estudante falsa (infração realizada por 5%). E acreditam que é mais errado jogar lixo em local proibido do que comprar CD falso.

Mais pobres têm melhor nota

Quem ganha até dois salários mínimos e tem escolaridade baixa apresentou índice de percepção do cumprimento da lei mais alto do que os que recebem mais de 12 salários e têm escolaridade média ou alta. E, quanto mais velhos eram os entrevistados, maiores eram os índices de percepção do cumprimento da lei.

- A percepção do "jeitinho" é mais das elites do que da população como um todo. O "jeitinho" supõe a lógica de conhecer pessoas, ter relações dentro do Estado que podem trazer benefícios - disse Leonardo Avritzer, cientista político da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Os brasileiros dão menos importância às ordens de policiais que às de juízes: 81% entendem que devem obedecer a decisões judiciais que determinem pagamento a alguém, e 41% acreditam que precisam cumprir ordens de policiais, mesmo que discordem delas. Isso, na opinião do coordenador da Direito GV, Oscar Vilhena Vieira, é preocupante.

- Um dos instrumentos de eficiência policial é a confiança. Quando o cidadão confia na polícia, ele leva informações que permitem que a polícia previna e busque a punição - afirmou Vieira.

Para os responsáveis pela pesquisa, os dados sobre obediência à norma que criminaliza a compra de produtos piratas também chamam atenção. Apenas 54% dos entrevistados responderam que é provável ou muito provável que a compra de um CD ou DVD falso resultará em punição, e só 64% acham que, se fizessem isso, seriam reprovados moralmente por amigos e familiares. E 91% das pessoas que responderam à pesquisa disseram ter comprado CD ou DVD pirata nos últimos 12 meses.

Para o professor emérito de Direito da USP Fábio Konder Comparato, achar que é fácil desobedecer às leis é algo histórico no país.

- Durante o período colonial, os administradores enviados por Portugal não obedeciam às leis do Reino e eram senhores absolutos no Brasil. Uma lei de 1831 proibiu o transporte de escravos da África para o Brasil e tinha penas severas para quem os trouxesse. E durante 20 anos essa lei não foi aplicada: entraram 750 mil africanos escravos no país - disse Comparato

Autor(es): Marcelle Ribeiro

O Globo

Fonte: Clipping do Ministério do Planejamento

segunda-feira, 22 de abril de 2013

"O que os Professores e os lutadores de sumô têm em comum?"

Sim, tanto a pergunta quanto a resposta, estão no livro FREAKONOMICS, indicado pelo xará (Alexandre Morais da Rosa) na disciplina "FUNDAMENTOS DA PERCEPÇÃO JURÍDICA" do Programa de Pós-Graduação da UNIVALI.
E, pela reportagem abaixo, não é só lá nas terras do Tio Sam que tal relação torna-se real, mas aqui em terrae brasilis também.




Fraude de educadores nos EUA põe bônus em xeque

22/04/2013 - Ao fraudar resultados de alunos da sua escola, Beverly Hall recebeu U$ 500 mil como bônus de desempenho

Curtis Compton / AP

SÃO PAULO - Em 2009, a americana Beverly Hall, então dirigente de um distrito escolar em Atlanta, foi eleita pela Associação Americana de Administradores de Escolas como a superintendente do ano. Foi recebida na Casa Branca pelo ministro da Educação, Arne Ducan. Seu feito era notável. Os 52 mil alunos dos colégios públicos que administrava, em sua maioria pobres, registravam médias maiores nos exames de avaliação de desempenho do que estudantes de áreas ricas da cidade. No mês passado, porém, os Estados Unidos descobriram que era tudo bom demais para ser verdade.

Beverly Hall foi formalmente acusada, junto com 34 educadores sob seu comando, de fraudar as notas dos alunos, orientando professores a apagar com borrachas e corrigir as respostas erradas nos testes que avaliam as escolas. A motivação seria o recebimento de bônus financeiros atrelados ao desempenho dos estudantes. Por causa dessas recompensas, Beverly, além de famosa, ficou rica: ganhou US$ 500 mil em bônus de performance.

O escândalo gerou um intenso debate sobre a recompensa por mérito nos Estados Unidos, país que mais aplica a fórmula — inspirada em práticas empresariais — nas escolas. No Brasil, onde os bônus são cada vez mais comuns nos sistemas educacionais, nunca houve fraude de tamanha dimensão. Mas já foram identificados alguns casos.

No Rio, a diretora do Ciep Prof. Luiz Carlos Veroneze, em Friburgo, chegou a ser exonerada pela Secretaria estadual de Educação no final de 2012, depois de ter sido filmada dando dinheiro a estudantes para eles fazerem a prova do Sistema de Avaliação da Educação do Estado do Rio de Janeiro (Saerj).

Em Sorocaba, interior de São Paulo, a Secretaria estadual de Educação encontrou indícios de irregularidade na escola Reverendo Augusto da Silva Dourado, após denúncias de que alunos tiveram a ajuda de professores para fazer provas do Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp) em 2011. O caso segue sob investigação.

Em Foz do Iguaçu (PR), a Câmara dos Vereadores apura se alunos com baixo desempenho foram orientados por docentes a não comparecerem no dia da realização da Prova Brasil em 2009.

Nas três cidades brasileiras, professores recebem bônus financeiros conforme o desempenho dos alunos.

Especialistas em educação no Brasil dizem que, mesmo não tendo sido identificado até agora um escândalo de grandes proporções como em Atlanta, o país precisa melhorar seus sistemas de acompanhamento para garantir a segurança das avaliações e a qualidade das informações por elas geradas.

Para o coordenador-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara, o Brasil tem pouca prática de fiscalização e tem que melhorar seus mecanismos de controle, com mais participação da sociedade civil organizada e de órgãos como Ministério Público e casas legislativas.

Cara cita o caso da escola estadual de Sorocaba, que foi classificada como a melhor de São Paulo no 5º ano em 2011, com nota 9,3. O caso levantou suspeitas porque todos os alunos tiveram nota máxima em matemática. Em 2010, a nota da escola havia sido 6,1.

— É preciso pegar casos em que há grandes alterações de nota para cima ou para baixo e fazer uma análise aprofundada sobre os motivos que levaram a essas alterações — disse Cara.

Professor do Grupo de Avaliação de Medidas Educacionais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Francisco Soares ressalta a importância de avaliadores externos e diz que é impossível acabar com os casos de corrupção, pois ela faz parte do ser humano. Para ele, apesar das denúncias, as avaliações de desempenho continuam produzindo dados confiáveis e essenciais para o planejamento de políticas educacionais.

— Hoje sabemos muito sobre a situação real dos alunos do Brasil, onde eles aprenderam e onde não aprenderam. Há pessoas que dizem que todo o sistema está sob suspeita. Acho que não. Os dados produzidos precisam ser usados para detectar corrupções — diz Soares.

O professor da UFMG afirma estar preocupado com a ausência de muitos alunos em avaliações de desempenho.

— A gente pode estar obtendo uma imagem muito mais positiva da escola do que a realidade. Caso os alunos que faltaram ao exame tivessem comparecido, será que a realidade de sua escola seria diferente? — questiona Soares.

Reynaldo Fernandes, professor de Economia da USP em Ribeirão Preto e ex-presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), lembra que o Brasil já teve vários casos de denúncias envolvendo vestibulares e compra de gabaritos.

Para ele, uma das principais medidas a serem tomadas é garantir que as provas de avaliação não sejam aplicadas pelos professores dos alunos e, de preferência, que agentes externos o façam, como já acontece em muitos exames feitos no país. Isso diminuiu o interesse dos aplicadores em fraudar a prova, já que não receberão bônus salariais relacionados aos resultados dos alunos fiscalizados.

No entanto, ele lembra que a questão da segurança tem um peso financeiro grande nos custos de aplicação de testes.

— Há modelos mais e menos seguros. Os mais seguros são os mais caros. Colocar pessoas de fora para fiscalizar encarece muito, mas ganha-se em segurança. Ter mais modelos de provas também ajuda, mas encarece e aumenta a logística necessária. A prova perfeita é muito intrincada — diz Fernandes.

William Massei, diretor de avaliação da Secretaria de Educação de São Paulo, diz que o sistema está sendo aprimorado para identificar fraudes.

— No ano passado, fizemos visitas a escolas escolhidas ao acaso no dia da aplicação das provas do Saresp. Estamos analisando as notas das escolas após a divulgação do Índice de Desenvolvimento da Educação do Estado de São Paulo (Idesp) para identificar esses pontos fora da curva — afirma Massei.

Fonte: O Globo

quarta-feira, 17 de abril de 2013

livros

Divulgando o lançamento de dois livros: uma homenagem mais do que merecida à grande Profa. Ruth Gauer, e outro do amigo Guto Jobim!

terça-feira, 16 de abril de 2013

"Ainda há Juízes em Berlim"

Através de uma conversa com o amigo e colega Diego Vasconcelos, vale a pena relembrar a história do Moleiro de Sans-Souci...




Em 1745, o Rei Frederico II da Prússia, ao olhar pelas janelas de seu recém-construído palácio de verão, não podia contemplar integralmente a bela paisagem que o cercava. Um moinho velho, de propriedade de seu vizinho, atrapalhava sua visão. Orientado por seus ministros, o rei ordenou: destruam o moinho! O simples moleiro (dono de moinho) de Sans-soussi não aceitou a ordem do soberano. O rei, com toda a sua autoridade, dirigiu-se ao moleiro: Você sabe quem eu sou? Eu sou o rei e ordenei a destruição do moinho! O moleiro respondeu não pretender demolir o seu moinho, com o que o rei soberano redargüiu: você não está entendendo, eu sou o rei e poderia, com minha autoridade, confiscar sua fazenda, sem indenização! Com muita tranqüilidade, o moleiro respondeu: Vossa Alteza é que não entendeu: ainda há juízes em Berlim!

Moral da história: é importante estimular a consciência cívica e rememorar a biografia desses grandes homens que fizeram a história da humanidade, para que não se percam os poderes de indignação e de ação. O moleiro não sabia se os juízes de Berlim iriam decidir a seu favor e isso não era o mais importante. O relato serve para não permitir o esquecimento sobre a importância da independência do magistrado - valor dele inseparável. A condição de livre, honesto, independente e obediente sim, mas apenas à lei e à sua própria consciência. Como dizia Cícero em sua antítese: “Devemos ser escravos da lei para poder ser livres”. 

“O direito é uma proporção real e pessoal, de homem para homem, que, conservada, conserva a sociedade, corrompida, corrompe-a” (Dante Alighieri). 

Essa história é verdadeira e, em momentos importantes, merece sempre ser lembrada. O moinho (símbolo de liberdade) ainda impera soberano ao lado do Castelo (Palácio de Sans-soussi, em Potdsdam, cidade a 30 minutos de Berlim).

Fonte: 
http://palavrasoutras.blogspot.com.br/2007/04/ainda-h-juzes-em-berlim.html





sexta-feira, 12 de abril de 2013

"O papel da educação é subverter as regras" - Jorge Larrosa



11/04/2013 O professor da Universidade de Barcelona e doutor em Filosofia da Educação, Jorge Larrosa Bondía, acredita que a educação é um lugar de recomeço do mundo e de refúgio da infância, um momento de acolher as crianças e iniciá-las na relação com o mundo. 

“A educação tem a ver com amor e responsabilidade. É o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumir a responsabilidade por ele e o renovamos com a chegada dos mais novos.”

Jorge Larrosa, doutor em Filosofia da Educação

Com diversos livros publicados, Larrosa realizou estudos de pós-doutorado no Instituto da Educação na Universidade de Londres e no Centro Michel Foucault, da Sorbonne, em Paris. Ele defende que as instituições e procedimentos educativos sejam menos padronizados e lidem melhor com o imprevisível, já que a infância traz consigo a possibilidade do recomeço, mais do que um compromisso com a continuidade.

“O nascimento é capturado por essa ideia de futuro e as crianças são colocadas na disposição de continuar um tempo. O futuro é, talvez, a imagem fundamental do Ogro. Digo, a figura do Ogro consiste em educar as crianças do ponto de vista do futuro de outra coisa que não as crianças. Elas têm que ser o futuro da economia, do Brasil, da democracia, da igualdade. Transformamos as crianças na gênese de um futuro que não é o delas, mas de outra coisa que passa por elas.”

A figura do Ogro, que transforma as crianças no futuro da sociedade, é sempre ruim?

Jorge Larrosa – O Ogro é um sequestrador de crianças. Essa figura é ambivalente, assim como o amor. Todos nós sabemos bem que há amores que matam. O amor é ambíguo e o gesto de sequestrar crianças também é ambíguo. O pedagogo é, etimologicamente, o escravo que conduzia as crianças à escola. Não era o professor, era o sujeito que arrancava as crianças de casa. Mas é um transportador benigno, porque encaminha as crianças.

Os Ogros não são todos bons, mas os amores tampouco são bons. É a ambivalência que constitui a vida. As mesmas palavras, as mesmas instruções, os mesmos objetivos podem funcionar em uma direção maligna ou em uma direção benigna. A vida é um pouco complicada.

Como é possível vencer as dificuldades personificadas no Ogro?

Larrosa - Essa pergunta pressupõe que o Ogro está fora e por isso é necessário guardar a porta, quando a instituição educativa já foi constituída por um Ogro. Ele está dentro, não fora. O papel da educação é subverter as regras, os procedimentos e as maneiras de fazer. Pensar em como é possível inventar novas formas de fazer no interior de um jogo que está cada vez mais prescrito.

Não sei aqui, mas na Espanha a tarefa dos professores é cada vez menos autônoma, cada vez há mais maneiras de ensinar, avaliar e aprender que eles não desenharam. O que eles fazem é aplicar políticas alheias. Há uma enorme desqualificação profissional. Ensinam a eles como implementar maneiras de fazer, não maneiras de participar. Os modos estão cada vez mais pautados.

Acho que há cada vez menos espaço para propor jogos que vão um pouco contra o previsto. Mas se não fazemos isso não há educação, há outra coisa. Há Mickey Mouse, corporações, futuro do Brasil, da economia, pleno emprego e outras coisas. Mas educação é estabelecer uma relação entre as crianças e o mundo.

No Brasil, Estado, igrejas e empresas estão envolvidas na educação. Como distinguir Ogros de acolhedores da infância?

Larrosa – Essa distinção é muito difícil. Os rituais mudam, as formas mudam, mas a lógica, no fundo, é a mesma. O Ogro é muito sedutor. Vivemos em um mundo de palavras e elas são muito enganosas. Todos nós jogamos, vendemos e usamos palavras bonitas: “crítica”, “autonomia”, “futuro”, “inovação” e não sei o que mais. Mas as palavras mentem muito.

O Ogro é aquela figura ambígua, é impossível saber se é bom ou mau. Sobretudo, é impossível saber se prestamos demasiada atenção ao que ele diz. Temos que ver o que ele faz, depende do contexto. Essa sensibilidade para as aparências é uma capacidade muito importante. Igrejas, pessoas públicas, privadas, todos trabalham para a infância, mas temos que ver o que fazem, a materialidade concreta das atuações, prestar atenção aos discursos que colocam uma boa intenção atrás da outra. Estabelecemos uma espécie de concorrência para demonstrar quem tem mais boas intenções.

Então, a educação tem que ser crítica. Sim. E sustentável. Sim. E também sensível à perspectiva de gênero. E inclusiva. E vamos colocando várias coisas até que alguém diz “etc.”, mas poderia prosseguir indefinidamente. É uma espécie de combate estranho. Creio que as boas intenções não devem ser declaradas, porque acabam virando mercadorias.

"O Ogro é aquela figura ambígua, é impossível saber se é bom ou mau."

Como é possível gerar autonomia e consciência crítica no processo de ensino?

Larrosa – Falar, como pensar, é escolher palavras. E escolher palavras é também eliminar palavras. A palavra “crítica” é uma que eu praticamente não utilizo, porque está muito vinculada a algum tipo de juízo. Tem a ver com avaliação, “gosto ou não gosto”, “me agrada ou não agrada”. Não sou muito capaz de fazer a oposição. A negação nunca me interessou muito, porque ela te faz prisioneiro daquilo que critica, de alguma maneira.

Portanto, creio mais na interação e na afirmação do que na negação e na crítica, mas essa é uma coisa minha. E com a palavra “autonomia”, o que acontece é que, em nossa época, as palavras que são da onda da liberdade, “emancipação”, “autonomia”, todas têm um pouco a ver com a constituição dos sujeitos como clientes. É uma lógica um pouco clientelar que está começando a dominar nosso mundo. Eu sou professor e vejo que a universidade está cada vez mais privatizada. Não porque seja pública ou privada, mas porque cada vez mais considera os alunos como clientes. Essas são palavras que me incomodam um pouco.

No entanto, ao mesmo tempo, continuo firmemente convencido de que a educação tem a ver com construir sujeitos que sejam capazes de falar por si mesmos, pensar e atuar por si mesmos. Não diria tanto em ser os donos de suas próprias palavras, porque as palavras não têm dono, mas sujeitos que sejam capazes de se colocar em relação com o que dizem, com o que fazem e com o que pensam. Eu não estou certo de que isso seria autonomia. Mas sei que continuo firmemente convencido de que a educação, se é emancipadora em algum sentido, tem a ver com dar as pessoas a capacidade de pensar por si mesmas.

O que deveríamos fazer com nossas preocupações com o futuro?

Larrosa - O discurso pedagógico moderno está todo constituído sobre essa noção de futuro. A educação seria um instrumento para construir um mundo mais democrático, mais tolerante, justo, igualitário, melhor. Essa é uma forma discursiva quase automática. Mas não foi sempre assim. A educação foi entendida, durante séculos, como a transformação de cada um, uma espécie de ascese pessoal, um trabalho sobre si mesmo que teria mais a ver com abandonar o mundo do que pertencer a ele. E há um momento em que a transformação de si vira a transformação do mundo e a educação vira o instrumento. Isso tem uma data de começo e seguramente tem uma data para terminar.

Mas o que me parece interessante é observar a concepção de infância. As crianças eram entendidas como sujeitos naturais que precisam ser introduzidos à cultura e à língua. A infância era uma espécie de figura do natural que tem de ser domesticada. Mas a figura moderna da infância é outra, onde ela é a matéria prima para construir um mundo distinto. A infância vira o ponto zero de um processo de desenvolvimento ou de aprendizagem. E a infância não é nem a matéria prima para a realização de nossos ideais nem esse ponto zero de um processo de desenvolvimento psicológico. A infância tem a ver com a possibilidade de começar. Por isso falamos tanto dos “novos”. As crianças são “os mais novos”.

E aí pode ocorrer algo interessante, que é o acontecimento, o imprevisível. A educação trabalha com a projeção, mas ao mesmo tempo deve ser sensível ao imprevisível, porque senão não aceita o acontecimento, não aceita a novidade, o que escapa ao projeto. O mundo nunca será como nós gostaríamos que fosse. Graças a Deus. Porque justamente nessa tensão entre o previsível e a introdução de um outro é que está o trabalho educativo. É fundamental fazer planos, mas ao mesmo tempo é fundamental saber que os planos nunca se realizam.

Como lidar com a infância quando ela ocorre fora das condições de garantia de direitos e desenvolvimento?

"Educação trabalha com potências"

Larrosa - Outro automatismo no discurso contemporâneo é que a escola tem que dar conta das condições particulares de cada criança, trabalhar com tudo aquilo que as condiciona e as determina. A lista de especialidades é interminável: condições sociais, culturais, intelectuais, cognitivas, psicológicas. No entanto, a minha ideia é a educação como refúgio incondicional, receber as crianças não em função daquilo que as determina, mas lidar com o indeterminado e que cada um possa se separar de suas próprias condições.

Eu creio que esse funcionamento, da educação como um contra destino, só pode acontecer se as crianças não são determinadas pelo que as condiciona, mas por suas possibilidades. Não pelo que as determina, mas pelo que as indetermina. A educação trabalha com as potências, não com as condições. Claro que há crianças ricas, pobres, grandes, negros, deficientes, com a família desestruturada etc. Mas eu acredito que devemos ser um pouco indiferentes, não prestar muita atenção a isso. Temos que dar atenção às potências, não às impotências. E o educador às vezes está muito preso fazendo a lista das condições, das impossibilidades.

Quais caminhos os profissionais da educação devem percorrer para estarem aptos a responder às novas demandas?

Larrosa – Não sei muito bem, porque isso muda muito depressa. Estou na academia há anos, já vi muitos paradigmas entrarem e caírem muitas vezes. Hoje em dia os termos “inclusão” e “exclusão” tem uma grande força. Nos anos 70 e 80 se falava em “inadaptação”. Na faculdade era “análise da inadaptação social”. Os paradigmas teóricos e as soluções são substituídos rapidamente.

Acho que isso obedece a lógica de mercado. Para vender, temos que inventar formas de trabalhar que transformem em obsoletas as que já existem. Por isso não sei bem. Mas posso dizer que os educadores estão perdendo capacidade profissional, ou seja, perdendo a capacidade de serem responsáveis por suas próprias decisões.

Creio que temos que defender a responsabilidade do educador, a possibilidade de inventar coisas e também de fracassar, de se equivocar, de aprender de novo. Não sei se isso acontece aqui, mas na Espanha os professores estão cada vez mais clonados e substituíveis. Se vestem igual, falam igual, se comportam igual, o mesmo sorriso, parece que vão ao mesmo dentista, aprenderam os mesmos métodos. São cada vez mais prescindíveis.

Deveríamos reclamar um pouco pelo direito à diferença, à invenção, a não jogar o que todo mundo joga, não sorrir como todo mundo sorri, não falar como todo mundo fala, não formular projetos como todo mundo formula projetos. Vou a debates em São Paulo, Lisboa, Bogotá e é uma sensação muito estranha: as pessoas falam das mesmas coisas, quase com as mesmas palavras. Há uma homogeneização tremenda. Porque não deixamos que as pessoas façam um pouco o que lhes parece melhor? Que pensem e que proponham. Caso se equivoquem, tudo bem, porque as políticas públicas, que têm tanto dinheiro, boas intenções e assessores, também fracassam. Portanto, nós corremos os mesmos riscos que ministros, secretários e grandes instituições.

Jorge Larrosa Bondía falou no Seminário Educação Integral: Crer e Fazer, em ocasião da 10ª edição do Prêmio Itaú-Unicef, ocorrido nos dias 2 e 3 de abril, em São Paulo.

Fonte: http://portal.aprendiz.uol.com.br/2013/04/09/o-papel-da-educacao-e-subverter-as-regras/