segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Entrevista MIGUEL REALE JR sobre o Projeto do Novo Código Penal

Caros,
vejam essa entrevista do MIGUEL REALE JR, detonando o Projeto do Novo Código Penal apresentado pelos "notáveis". É do mês passado mas está valendo, até porque, como comentei, essa semana tecerei alguns comentário sobre o Projeto Sarney-Dipp.
Boa leitura!
 
Prof. Matzenbacher


"Novo Código Penal é obscenidade, não tem conserto"

Por Pedro Canário e Marcos de Vasconcellos

 
De todas as atividades que Miguel Reale Júnior já desempenhou na vida, a que melhor o define, e que exerceu por mais tempo, é a de professor. É livre-docente da Universidade de São Paulo desde 1973 e professor titular desde 1988. Foi lá também que concluiu seu doutoramento, em 1971. Tudo na área do Direito Penal.
 
Fora das salas de aula, foi ministro da Justiça de Fernando Henrique Cardoso, secretário estadual de Segurança Pública de São Paulo durante o governo de Franco Montoro (1983-1987), presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos desde sua criação até 2001 e presidente do PSDB. Mas é a versão "professor" que o jurista mais deixa aflorar nesta primeira parte da entrevista concedida à revista Consultor Jurídico no dia 21 de agosto.
 
O texto do anteprojeto de reforma do Código Penal, elaborado por uma comissão de juristas nomeada pelo Senado, recém-enviado ao Congresso, é hoje o alvo preferido do penalista. “O projeto é uma obscenidade, é gravíssimo”, diz. Para ele, os juristas chefiados pelo ministro Gilson Dipp, do Superior Tribunal de Justiça, não estudaram o suficiente. “Não têm nenhum conhecimento técnico-científico”, dispara.
 
Segundo o professor, faltou experiência à comissão. Tanto no manejo de termos técnicos e científicos quanto na elaboração de leis. Entre os erros citados, o mais grave, para Reale Júnior, foi a inclusão de doutrina e termos teóricos e a apropriação, segundo ele, indiscriminada, da lei esparsa no código. “Não tem conserto. Os erros são de tamanha gravidade, de tamanha profundidade, que não tem mais como consertar.”
 
Leia a primeira parte da entrevista:
 
ConJur — Qual sua avaliação do projeto de reforma do Código Penal?
Miguel Reale Júnior — É uma obscenidade, é gravíssimo. Erros da maior gravidade técnica e da maior gravidade com relação à criação dos tipos penais, de proporcionalidade. E a maior gravidade de todas está na parte geral, porque é uma utilização absolutamente atécnica, acientífica, de questões da maior relevância, em que eles demonstram não ter o mínimo conhecimento de dogmática penal e da estrutura do crime.
 
ConJur — Onde isso aconteceu?
Miguel Reale — Basta ler. Para começar, no primeiro artigo. Está escrito lá: Legalidade. “Não há crime sem lei anterior”. É anterioridade da lei penal! Não existe lei anterior. E eles põem a rubrica de penal na legalidade. Nas causas de exclusão da antijuridicidade, eles colocam “exclusão do fato criminoso”, como se fossem excluir um fato naturalístico. Não é o fato criminoso que desaparece, é a ilicitude que desaparece. É ilógico. De repente, desaparece o fato. Veja o parágrafo 1º: “Também não haverá fato criminoso quando cumulativamente se verificarem as seguintes condições: mínima ofensividade, inexpressividade da lesão jurídica”. Mas uma coisa se confunde com a outra.
 
ConJur — Onde esses erros interferem?
Miguel Reale — Na parte do princípio da insignificância, da bagatela, colocam lá como exclusão do fato criminoso. E o que se conclui? Que é quando a conduta é de pequena ofensa ou que a lesão seja de pequena mora. Ofensividade e lesividade, para os autores que interpretam, são coisas diferentes. Tem de ter as duas, a ofensividade e a lesividade. E colocam no projeto também como condição, em uma linguagem coloquial, “reduzidíssimo”. Instituiu-se o direito penal coloquial. “Reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento.” “Grau de reprovabilidade reduzidíssimo”. A reprovabilidade é da culpabilidade, não tem nada a ver com a antijuridicidade. Que haja um reduzidíssimo grau de reprovação, que isso é uma matéria da culpabilidade, não tem nada a ver com exclusão da antijuridicidade, que erroneamente eles chamam de fato criminoso.
 
ConJur — O que quer dizer "reduzidíssimo"?Miguel Reale — Boa pergunta. O que é reduzidíssimo? Grau de reprovabilidade? A reprovabilidade é elemento da culpabilidade, é o núcleo da culpabilidade, da reprovação. Não é antijuridicidade, não é ilicitude. Estado de necessidade. Considera-se em estado de necessidade quem pratica um fato para proteger bem jurídico. Bem jurídico é o núcleo, é o valor tutelado da lei penal. Ele não sabe o que é bem jurídico? Não é bem jurídico, é direito! Bem jurídico é um termo técnico. Qual é o bem jurídico tutelado pela norma? O juiz vai procurar saber qual é o bem jurídico. O bem jurídico é a vida, por exemplo. Bem jurídico é um conceito dogmático geral, é um valor tutelado por um direito. O que isso mostra? Falta de conhecimento técnico científico de direito jurídico.
 
ConJur — Faltou conhecimento?
Miguel Reale — Faltou estudar. Falta conhecer, manobrar, manejar os conceitos jurídicos. É isso que preocupa. E tem muitas teorias. Então, vamos em determinado autor, como a teoria do domínio do fato. É uma determinada teoria. Não pode fazer teoria no código. Mas existem coisas aqui que realmente ficam... Por exemplo: “considera-se autor”. Vamos ver se é possível entender essa frase: “Os que dominam a vontade de pessoa que age sem dolo atipicamente”. Isso aqui é para ser doutrina. "Atipicamente." Dominam a vontade de pessoa que age sem dolo "atipicamente". Trata-se de alguém que está sob domínio físico, como uma pessoa com uma faca no pescoço. Ou quem é coagido. Usaram uma linguagem que você tem que decifrar. "Dominam a vontade de pessoa que age sem dolo". Como sem dolo? "Justificada" é quem vai e atua em legítima defesa, não tem nada a ver com falta de dolo. Não é dolo. Então, é agir sem dolo de forma justificada? Isso não existe! Não se concebe isso porque são conceitos absolutamente diversos e diferentes.
 
ConJur — São erros banais?
Miguel Reale — Banais. Em suma, trouxeram toda a legislação especial sem se preocupar em melhorar essa legislação esparsa que estava aí, extravagante, que tinha erros manifestos já anotados pela crítica e transpõe sem mudar nada. Crimes financeiros, crimes ambientais. Eu defendo que a lei dos crimes ambientais foi a pior lei brasileira. Mas esse projeto ganha por quilômetros...
 
ConJur — A Lei de Crimes Ambientais é tão ruim?
Miguel Reale — Ela diz que a responsabilidade da pessoa jurídica só ocorrerá se houver uma decisão colegiada pela conduta criminosa, cometida por decisão do seu representante legal ou por ordem do colegiado, em interesse e benefício da entidade. Mas a maior parte dos crimes ambientais são culposos, os mais graves. Quando vaza petróleo na Chevron, por exemplo, não houve uma decisão: “Vamos estourar o cano aqui e destruir ecossistemas...” Pela lei, precisa haver uma decisão de prática do delito. Deixar escrito: “Vamos praticar o delito.” No projeto de Código Penal, eles reproduzem a lei ambiental, mas têm a capacidade, que eu mesmo imaginava inexistente, de aumentar ainda mais as tolices.
 
ConJur — Por que aconteceram erros tão graves?
Miguel Reale — Não sei. Há pessoas até muito amigas, mas que não têm experiência na área efetivamente acadêmica ou experiência legislativa. Eles não conhecem teoria do Direito. Estão trabalhando com teoria do Direito com absoluto desconhecimento técnico.
 
ConJur — Como foi escolhida a comissão?Miguel Reale — Foi o Sarney. Foram pessoas conhecidas, do Sergipe, de Goiás. É o "Código do Sarney", porque daqui a pouco acaba o mandato dele, mas o código criado por ele precisa perdurar. O que mais me impressiona é a forma como isso foi feito.
 
ConJur — Qual foi?Miguel Reale — Foi picotado. Tanto que na exposição de motivos, cada artigo vem assinado por uma pessoa. Não houve trabalho conjunto sistemático, não houve meditação. Eu participei de várias comissões legislativas. O trabalho que dá é você pôr a cabeça no travesseiro, pensar, trocar ideias, fazer reuniões, brigar.
 
ConJur — Falhas teóricas prejudicam os méritos do texto?
Miguel Reale — Seria uma vergonha para a Ciência Jurídica Brasileira se saísse um código com erros tão profundos. Quando você acha que encontrou um absurdo, leia o artigo seguinte. O artigo 137 prevê que a pena para difamação vai de um a dois anos. Já o artigo 140 diz que se a difamação for causada por meio jornalístico, a pena é o dobro. A Lei de Imprensa, que foi declarada inconstitucional, e era considerada dura demais, previa que a pena para isso era de três meses!
 
ConJur — O texto recebeu elogios.Miguel Reale — Os elaboradores é que falaram bem! Fizeram um Código Penal que jornalista gosta. Punham no jornal e se valiam dos meios de comunicação do STJ ou do Senado para agitar a imprensa. Quem é que falou bem? Qual foi o jurista que falou bem? Até porque não se conhecia o projeto, só se conhecia por noticia de jornal. Isso que eu estou dizendo sobre o fato criminoso é gravíssimo. Mas tem erros que já estavam incluídos nos dados preparatórios, como o nexo de causalidade. Eles vão mexer em termos que estavam consagrados no Direito, que ninguém.
 
ConJur — Não estavam em pauta?
Miguel Reale — Não estavam pauta, já estavam consolidadas no Código Penal. Não é uma coisa para ser mexida, nós mesmos não mexemos em 1984, quando fizemos a reforma da parte geral. Mexemos na parte do sistema de penas, mas eles acabaram com o livramento condicional sem justificativa.
 
ConJur — Foi para diminuir as penas das condenações?
Miguel Reale — Pelo contrário, as penas são elevadíssimas! E para fatos irrelevantes. "Artigo 394: omissão de socorro para animal." A qualquer animal. Se você passa e encontra um animal em estado de perigo e não presta socorro a esse animal, sem risco pessoal, sabe qual é a pena? De um a quatro anos. Agora, omitindo socorro a criança extraviada, abandonada ou pessoa ferida, sabe qual a pena? Um mês. Ou seja, a pena por não prestar socorro a um animal é 12 vezes maior do que a pena de não prestar socorro a uma pessoa ferida. Outro exemplo: pescar ou molestar cetáceo. Sabe qual é a pena? Dois a quatro anos. Mas se você molestar um filhote de cetáceo, é três anos. Se você só pesca o cetáceo é dois, mas se o cetáceo morre, passa para quatro anos. Você vai pescar para quê? Para colocar a baleia no aquário dentro de casa?
 
ConJur — E sem livramento condicional.
Miguel Reale — Pois é. Acabar com o livramento condicional é uma violência. Eles criam uma barganha com a colaboração da Justiça. A barganha elimina o processo sem a presença do réu, e é feita pelo advogado ou defensor público que estabelece que não haverá processo. Então, aceita-se uma negociação na qual haverá a imposição de uma pena reduzida sem que se possa aplicar o sistema fechado.
 
ConJur — De onde tiraram isso?
Miguel Reale — Do sistema americano. Para qualquer crime, qualquer delito, haverá barganha para não manter o sistema fechado. E depois da colaboração, já mais vergonhosa de todas, porque quebra com todos os sistemas éticos de vida, que é denunciar os amigos para todos os delitos, vem a colaboração com a Justiça em qualquer tipo de crime. Aí o sujeito não é apenado, em qualquer tipo de delito, se ele antes da denúncia apresentar uma investigação, elementos suficientes para culpar os coautores, os cúmplices. É uma coisa importada. Esse exemplo americano é extremamente grave, porque nos Estados Unidos já se tem a comprovação, estudos estatísticos, do número de pessoas que, na incapacidade de produzir provas a seu favor, na falta de ter um advogado competente, aceitam a barganha porque acham melhor, mais seguro aceitar uma pena menor do que enfrentar o processo.
 
ConJur — Mesmo sendo inocentes?
Miguel Reale — Mesmo sendo inocentes. O número de inocentes que acabam aceitando a barganha, com a ameaça de que haverá uma pena muito maior de outra forma, é muito grande. Por outro lado, a colaboração da Justiça é o sujeito ficar praticando o delito até a hora que a barca vai afundar. Na hora que a barca afunda, ele pula fora e entrega os outros. Quer dizer, é o Estado se valendo da covardia e da falta de ética do criminoso. É a ética do delator. É premiar o mal caráter, premiar o covarde. Porque há de ter pelo menos um código de ética entre aqueles que praticam o crime.
 
ConJur — O novo Código Penal vai acabar com isso?
Miguel Reale — Todas as leis internacionais querem introduzir normas de delação. Delação demonstra o seguinte: incapacidade de apuração. É o juiz, recebendo os fatos, considerar o perdão judicial e a consequente extinção da punibilidade. Se imputado como primário, ou reduzirá a pena de um terço a dois terços ou aplicará somente a pena restritiva. Quer dizer, não tem pena de prisão ao acusado que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação. Mas como voluntariamente? Ele está com um processo em cima dele.
 
ConJur — Como funcionaria essa delação?
Miguel Reale — Você delata, sua delação fica sigilosa, e depois que é delatado é dado conhecimento dela aos advogados das partes, ou dos réus, que foram delatados pelo beneficiário. É delação de coautor. Os coautores vão ser processados por causa da delação. Está dizendo aqui que não basta a delação para ser prova, tem que ter outros elementos. Mas ele delatou. E se não tiver nenhuma outra prova? Não está escrito aqui. Aqui diz a total ou parcial identificação dos demais coautores, e não prova.
 
ConJur — Ou seja, é preciso correr para delatar primeiro e não ser delatado por um comparsa.
Miguel Reale — Sim. E a delação tem de ter como resultado: "a total ou parcial identificação dos demais coautores ou partícipes da ação criminosa; a localização da vítima com a sua integridade física preservada". Aqui é no caso de um sequestro. Recuperação total ou parcial do produto do crime.
 
ConJur — Dispositivos como esses são para ganhar manchetes?
Miguel Reale — É isso que estou dizendo, não se faz Código Penal com o jornalista à porta. A cada pérola produzida, punham na imprensa. Os notáveis não têm o menor conhecimento técnico-científico, o menor conhecimento jurídico. O que me espantou foi, na parte geral, encontrar isso. Confusões gravíssimas conceituais. Algumas coisas são mais técnicas. “A realização do fato criminoso exige ação ou omissão, dolosa ou culposa, que produza ofensa, potencial ou ofensiva.” Tem vários crimes que não têm ofensa potencial ou efetiva. Por exemplo: tráfico de drogas, não tem. Qual a ofensa potencial que o tráfico de drogas oferece a um determinado bem jurídico? Não tem. São chamados crimes de perigo abstrato, em que você presume que há um perigo em decorrência dele. Porte de entorpecentes, por exemplo. Porte de arma é crime grave hoje. Não tem nenhuma ofensa potencial ou efetiva. Porque é um crime de perigo abstrato, é um crime chamado de "de mera conduta". E hoje isso se repete. Em vários tipos de delito há a figura do crime de perigo abstrato. Quando fala do fato criminoso, você já está incluindo todos os crimes de perigo abstrato. Isso tem que ser comedido. Têm de ser limitados os crimes de perigo abstrato, mas com o novo texto, acaba-se com os crimes de perigo abstrato. Tem ainda uma frase que eu não consegui entender: “A omissão deve equivaler-se à causação”. Como ela mesma vai se equivaler? Não dá para entender. Tem outra coisa aqui: “o resultado exigido.” Exigido por quem?
 
ConJur — Seria o resultado obtido?
Miguel Reale — Claro! Resultado exigido? Por quem? O resultado exigido pela norma?
 
ConJur — O senhor havia falado da questão do dolo.
Miguel Reale — Isso. O artigo 18, inciso I, diz: “doloso, quando o agente quis realizar o tipo penal ou assumiu o risco de realizá-lo”. Eu quis o tipo penal? O tipo penal tem vários elementos constitutivos. É falta de conhecimento técnico no uso dos termos técnico-jurídicos. O tipo penal é um conceito da estrutura do crime, dogmático. Não se "quer o tipo penal", se quer a ação. O texto diz também que há um início de execução quando o autor realiza uma das condutas constitutivas do tipo ou, segundo seu plano delitivo, pratica atos imediatamente anteriores à realização do tipo. Se você não realizou, são os atos preparatórios que exponham a perigo o bem jurídico protegido. Isso é o samba do crioulo doido! Por isso que eu disse que o problema não é ser técnico, é ser compreensível e se ter um pouco de lógica, de fundamento, de conhecimento. São coisas que realmente me deixam extremamente preocupado.
 
ConJur — Pode melhorar no Congresso?
Miguel Reale — Não tem conserto. Os erros são de tamanha gravidade, de tamanha profundidade, que não tem mais como consertar. Eu sei que o Executivo não põe suas fichas nesse projeto. O projeto é realmente de envergonhar a ciência.
 
ConJur — O desinteresse do governo é aberto?
Miguel Reale — Não. Eu tive notícias de que o Executivo não teria interesse porque sabe dos comprometimentos, das ausências técnicas que estão presentes nesse projeto.
 
ConJur — Já lhe consultaram?
Miguel Reale — Não. E o membro mais importante que tinha nessa comissão, que tinha experiência legislativa, era um acadêmico. Era o professor Renê Dotti, que saiu dizendo que não tinha condições de permanecer ali do jeito que os trabalhos estavam sendo conduzidos.
 
ConJur — No seu ponto de vista, qual é o erro principal?
Miguel Reale — É você estabelecer uma punição, uma interferência do Direito Penal em fatos que devem ser enfrentados pelo processo educacional, processo de educação na escola, processo de educação na família, e não com a repressão penal.
 
ConJur — Tentar resolver todos os problemas com punição pode ser visto como reflexo do momento social em que vivemos?
Miguel Reale — Também. Imaginar que trazer punição do Direito Penal para resolver as coisas, que vamos dormir tranquilos porque o Direito Penal está resolvendo tudo. É a ausência dos controles informais, a escola, a igreja, a família, o sindicato, o clube, a associação do bairro, a vizinhança etc. São todas formas naturais, sociais, de controle social. Quando os controles informais já não atuam, se reforça o Direito Penal como salvação. Passa a ser o desaguador de todas as expectativas.
 
ConJur — Isso mostra uma hipertrofia do Estado?
Miguel Reale — Uma grande hipertrofia e uma fragilidade política e uma fragilidade social. Políticas de sociabilidade, políticas de agonia social. É um agigantamento do Direito Penal.
 
ConJur — Passamos também por um afã acusatório, ou seja, é mais importante fazer uma acusação do que se chegar a uma solução?
Miguel Reale — Sim. Isso passa um pouco pela dramatização da violência, pelo Direito Penal presente nos meios de comunicação diariamente, uma exacerbação. Ao mesmo tempo em que existe uma crença no Direito Penal, há uma descrença, porque se chega a um momento de grande decepção. Ao mesmo tempo em que depositam todas as fichas no Direito Penal, as pessoas dizem: “Mas ninguém vai ser punido” ou “só vão ser punidos os pequenos, e os grandes nomes vão se safar”. A pesquisa da Folha de S.Paulo sobre o mensalão é um exemplo. As pessoas acham que os réus são culpados, mas 73% acham que eles não serão punidos. Ou seja, é ao mesmo tempo ter o Direito Penal como único recurso, e saber que esse recurso não vai funcionar. Aí vem um grande desânimo que acaba, talvez, levando negativamente a uma grande permissividade.
 
ConJur — O nosso sistema penal está preparado para isso?
Miguel Reale — Não, inclusive com esse problema de não haver o livramento condicional. O que eu vejo é o seguinte: grande parte da população carcerária está presa por crime de roubo, violência, crime contra patrimônio, ou seja, roubo comum, roubo à mão armada, latrocínio e tráfico de drogas. Esses são os crimes, os núcleos que mais levam à prisão. A maior parte é por latrocínio e tráfico de drogas, que são crimes hediondos. Ser crime hediondo não levou a uma redução da incidência criminal. E os crimes de roubo, que crescem vertiginosamente, crime de roubo comum ou roubo à mão armada, ou mesmo, infelizmente, com mais gravidade, o latrocínio, cresceram vertiginosamente, pelo menos em São Paulo, e é um crime hediondo. Por que se dissemina? Porque existe uma grande impunidade. Essa impunidade vem do quê? Da falta de apuração dos fatos delituosos.
 
ConJur — Então o problema é da falta de polícia e não de lei?
Miguel Reale — Nem da falta de lei, nem da falta de polícia. É da falta de investigação. O percentual dos crimes de roubo cuja a natureza é descoberta é de apenas 2%. Então, se nós temos 500 mil presos a maioria desses presos é por roubo, imagina se você descobrisse dez vezes mais, ou 20%. Qual seria a população carcerária? Eu mesmo fui assaltado duas vezes e não registrei boletim de ocorrência. O problema todo é imaginar que a lei penal em abstrato tenha efeito intimidativo. O que tem efeito intimidativo é a lei quando é efetivada ou quando se mostra possível de efetivar. Vou dar um exemplo: se você está em um estrada e passa um carro no sentido contrário e dá um sinal de luz, você diminui a velocidade porque tem guarda rodoviário pela frente. Quando você passa o guarda rodoviário, você acelera. Quando você está na estrada e tem lá o radar, você diminui. Então o que é? É a presença efetiva, ou humana ou por via de instrumentos de controle.
 
ConJur — Neste ano, o Código Civil, cujo anteprojeto foi elaborado pelo seu pai, Miguel Reale, faz dez anos. Foi um projeto que demorou 25 anos para ser aprovado, aparentemente sem pressa.
Miguel Reale — E foi um trabalho imensamente meditado. Depois veio a Constituição Federal, daí houve 400 emendas oferecidas, um grande trabalho do relator no Senado, e meu pai respondeu as 400 emendas sozinho, à mão. Nós temos tudo isso feito à mão por ele, anotado. Eu guardo tudo isso em um instituto que nós temos.
 
ConJur — Quanta gente havia na comissão elaboradora?
Miguel Reale — Pouca gente. E o Código Civil está produzindo efeitos, tem novidades e contribuições importantes. Há erros, mas ao mesmo tempo foi reconhecido o imenso avanço que o Código Civil trouxe na consagração de valores importantes do Direito Civil, como a função social, como a sociabilidade. Um código voltado para um futuro aberto graças a normas que têm cláusulas abertas, cláusulas gerais. Foi um código muito pensado, muito meditado, meu pai discutia muito com outros professores, como o professor Moreira Alves, com quem trocava ideias, e havia troca de ideias no Congresso Nacional. Assim que se faz uma legislação de tamanha grandeza.
 
ConJur — O fato de o Direito mudar muito rápido não exige que se aprove uma lei antes que seja tarde demais?
Miguel Reale — Aí é que fica tarde demais, porque já nasce mal feito. Não se pode fazer uma legislação dessa maneira, de afogadilho. Aliás, tem coisas ali no projeto de reforma do Código Penal que são notáveis, como toda a questão da parte geral, que exige um profundo conhecimento da estrutura do crime, da dogmática penal. E já foi visto que não existe nem de longe o conhecimento técnico-jurídico penal na parte geral, que é a parte central.

Pedro Canário é repórter da revista Consultor Jurídico.
Marcos de Vasconcellos é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 2 de setembro de 2012
 

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Projeto do novo Código Penal

Caros,
para aqueles que ainda não viram o Projeto do Novo Código Penal, o CP Sarney-Dipp, vejam ele aí. Semana que vem, comentários sobre...
Bom fim de semana,
 
Prof. Matzenbacher



Os nomes "inusitados" das operações policiais

Em homenagem a alguns Amigos!
E vamos combinar, sinceramente, vocês tem sim um cara só pra isso!


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Os nomes "inusitados" das operações policiais
 
Nos últimos dez anos, a Polícia Federal tem um aliado precioso para dar notoriedade às operações desencadeadas no País. Nomes cômicos e misteriosos, que “desenterraram” personagens e histórias mitológicas, passaram a ser uma marca nas ações da corporação. Apesar da frequente criatividade, a PF garante não contar com profissionais da área da publicidade para auxiliar o batizado. Oficialmente, cada delegado tem autonomia para definir o nome da ação.
Até 2007, no entanto, a PF contava com um entusiasta no assunto, especializado em dar alcunhas mitológicas às operações: o ex-diretor executivo do órgão, delegado Zulmar Pimentel. De acordo com informações de bastidores, Pimentel era um marketeiro informal que costumava aprovar e alterar os nomes, quando achava necessário.
Evangélico, o delegado é apaixonado por histórias bíblicas, utilizadas como inspiração para dezenas de trocadilhos relacionados aos crimes investigados. Há quatro anos, o feitiço se voltou contra o feiticeiro. Pimentel foi afastado da PF ao ser um dos alvos da Operação Navalha, sob suspeitas de que estaria repassando informações sigilosas a colegas. Mesmo sem as dicas de Pimentel, o órgão buscou um nome criativo: a navalha fecha em si mesma e é feita para cortar quem a usa. Atualmente, o delegado é o titular da Secretaria de Segurança do Amazonas. A reportagem do Terra tentou contato com Pimentel, mas não obteve retorno.
Confira alguns dos nomes inusitados adotados nos últimos dois anos em operações dos federais.
 
Estêvão Pires

Para continuar lendo acesse: 
 
http://www.terra.com.br/noticias/infograficos/batismo-de-fogo/

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Por que a democracia precisa de Juízes garantistas?


*Por Alexandre Morais da Rosa. Professor Adjunto de Processo Penal da UFSC. Juiz de Direito. Membro da AJD, Doutor em Direito, e aparentemente humano, demasiadamente…
Alfred Hitchcock dizia que o terror se obtém com a surpresa, enquanto o suspense pelo aviso antecipado. O que se passa no campo do direito e do processo penal é um misto entre as diversas surpresas, que causam terror, antecedidas pelo aviso de que isto irá acontecer. O aviso de que isto irá acontecer está presente no discurso midiático do terror e se pode invocar a metáfora de filmes e livros, justamente para dar sentido ao que se passa.
O filme “Tubarão” contou com um recurso que o próprio Steven Spielberg não contava nas filmagens: o efeito suspense conseguido somente porque o terror da surpresa era precedido do suspense em que o predador apenas era sugerido, indicado, como se não estivesse presente. Consta no Wikipédia que “O principal atrativo do filme, o tubarão mecânico, apresentou vários problemas durante as filmagens, causados pela água salgada do mar, pois Spielberg não quis filmar em uma piscina, como seria o convencional. Várias sequências em que o Tubarão apareceria, Spielberg teve que substituí-lo por filmagens de marolas e movimentos de água. Mesmo nas poucas ocasiões em que o Tubarão podia ser usado, a responsável pela montagem teve que usar de muita habilidade, para que as cenas não parecessem falsas. As plateias do mundo todo não notaram essas falhas, graças ao exímio trabalho de direção e montagem. Mas para todos os artistas que trabalharam no filme ficou a irritação com aquele “maldito tubarão”, conforme diziam nas entrevistas e depoimentos posteriores.” Esse efeito semblant que o filme proporciona, a saber, de se estar com medo em qualquer lugar, pois o “Tubarão” poderia se fazer presente, do nada, no efeito surpresa, ocasionou o “suspense” de toda uma geração… Essa estrutura de se aproveitar de uma “surpresa” violenta para causar “suspense” e se usar ideologicamente, de fato, está presente na nossa película diária: a continuação incessante do medo!
Nesse sentido, o “crime-tubarão” é utilizado como mecanismo midiático da violência constitutiva do humano e, paradoxalmente tratado como se fosse uma surpresa no cotidiano, fomentado por uma realidade excludente, na qual o neoliberalismo se esgueira como financiador oculto desta economia criminal e obscena. A surpresa é, no caso, falsa, da ordem do semblant. Sabe-se, desde antes, que as possíveis variáveis do crime não decorrem, de regra, de um ato de terror individual, mas sim de toda uma coletividade que produz e se regozija com o crime. De qualquer modo, percebe-se que o destino de quem pretende sair desta metáfora é complicado, justamente porque as coordenadas culturais em que se está submerso reproduz o modelo da única possibilidade capaz de nos livrar do tubarão: matando-o! E se mata; muito. O sistema penal produz vítimas de todos os lados. Somente não percebe quem continua acreditando nos contos de mocinho e bandido. De um lado o mal, organizado para causar o desespero dos que se situam – imaginariamente e sem culpa – do lado do bem. O poder se organiza assim, especialmente no Direito Penal.
Acontece, entretanto, que diante do levante neoliberal e do agigantamento do sistema penal, as soluções processuais, diretamente: seus custos passaram a ser gigantescos. Daí que a partir de uma lógica do custo/benefício, as normas processuais precisaram ser mais eficientes. Importando-se as noções de tradições diversas, desprezando o giro que modo de pensar da filosofia pragmática exige, algumas novidades foram introduzidas no país, tudo sob o mote de matar o “tubarão”. Para isso a Justiça Criminal eficiente, com custos reduzidos, sem direito de defesa, parece a “demanda econômica” proposta, abolindo os limites garantistas do sistema penal.
Daí que se apegar ao “Garantismo Constitucional” de Luigi Ferrajoli é a busca de um limite ao “eficientismo” do processo penal. Articula garantias mínimas que devem, necessariamente, fazer barreira para se evitar que se negocie o “direito à liberdade” e a presunção de inocência. Defender direitos de acusados passou a ser uma atividade clandestina. Em nome do bem, dos bons e justos, divididos em dois lados, os enunciadores da salvação colocam-se na missão (quase divina) de defenestrar o mal na terra, transformando qualquer violador da ordem em “tubarão”, na luta por sua extinção.
Talvez se possa entender um pouco mais sobre os dilemas contemporâneos do processo penal eficiente quando se é acusado, a saber, ao se colocar na posição de acusado. Qual o juiz que se pretende ver julgando-nos? Se nós fossemos os juízes poderíamos dizer que seríamos garantistas? Ou a garantia somente interessa quando formos acusados? O que não se pode é continuar aceitando as “novidades” legislativas sem uma profunda reflexão de qual é o nosso papel, nem os efeitos que nossas posições podem engendrar no coletivo. Os limites democráticos precisam ser recompostos. O “tubarão” já foi preso, morto, esquartejado, mas sempre surge o medo de que ele retorne, não porque o quer, mas porque o “tubarão” habita o mais íntimo do humano. Surpresa? Medo? Angústia? Tudo humano, demasiadamente humano, diria Nietzsche. Mais dia menos dia todos precisaremos de juízes garantistas… basta conseguir ficar vivo.
Fonte: BLOG DIREITO E CINEMA www.heloisaquaresma.blogspot.com
http://www.heloisaquaresma.blogspot.com.br/2012/10/alexandre-morais-da-rosa.html

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Em caso de empate, inocência deve ser assegurada

 
Por Gustavo Henrique Righi Ivanhy Badaró
 
No julgamento da Ação Penal 470 pelo Supremo Tribunal Federal surgiu interessante discussão sobre qual deve ser o resultado do julgamento, quando a votação terminar empatada, no caso, cinco votos pela condenação e cinco votos pela absolvição. A questão ainda vai ser decidida pelo Plenário.
O problema decorreu da composição incompleta do tribunal, pela aposentadoria do Ministro Cezar Peluso. Mas esta não é a única causa geradora de empate, que também pode surgir em razão do impedimento ou suspeição de um ministro para julgar uma determinada ação, ou no caso de ausência justificada de um julgador, por ocasião do julgamento. Trata-se, pois, de tema que transcende ao chamado caso do mensalão.
A discussão surgiu, em parte, por não haver regra expressa sobre como decidir a ação penal em caso de empate na votação. Mas seria simplista achar que o problema estaria resolvido se houvesse um dispositivo legal no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal determinando o que deveria prevalecer no caso de mesmo número de votos pela condenação e pela absolvição.
Há no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal apenas uma regra geral, no artigo 13, caput, inciso IX, prevendo que, no caso de empate na votação, decorrente de ausência de ministro, em virtude de impedimento, suspeição, vaga ou licença médica superior a 30 dias, é atribuição do Presidente “proferir voto de qualidade nas decisões do Plenário”. Por outro lado, em matéria penal, existe regra somente para o empate no julgamento de habeas corpus ou recurso em habeas corpus, pelo plenário do Supremo Tribunal Federal. O artigo 146, parágrafo único, dispõe que, em tais casos, “proclamar-se-á, na hipótese de empate, a decisão mais favorável ao paciente”.
Uma possibilidade seria considerar que, ausente regra expressa sobre o tema, o artigo 146, parágrafo único, que trata apenas do habeas corpus, deveria ser aplicado, por analogia, a todos casos penais, inclusive ações originárias, no sentido de se adotar a solução mais favorável ao acusado.
Outra solução, que levaria a resultado diverso, seria aplicar a previsão geral, que prevê o voto de qualidade do presidente, nos termos do artigo 13, caput, inciso IX, também aos casos de ações penais originárias de competência originária do STF. Neste último caso, considerando que o Presidente já vota como integrante do Plenário, ele votaria duas vezes.
Diante do impasse, também surgiram manifestações no sentido de que a omissão do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal deveria levar à absolvição porque o empate na votação exprimiria uma dúvida do conjunto dos ministros, e no processo penal, na dúvida, deve sempre a decisão mais favorecer ao acusado.
Nenhuma das três soluções já aventadas merece acolhida.
Não é caso de aplicação do in dubio pro reo, porque não se está no contexto de solução de dúvida sobre fato juridicamente relevante, enquanto regra de julgamento no processo penal. Não seria caso de aplicação do in dubio pro reo quanto à existência do fato ou autoria, mas quanto ao resultado do seu julgamento. Segundo Lozzi, neste caso, a solução favorável ao acusado nada tem que ver com o ônus da prova ou a dúvida, encontrando seu fundamento no favor rei, que não se confunde com o in dubio pro reo.
A solução também não estará na aplicação do inciso IX do artigo 13 do RISTF que prevê, entre as atribuições do Presidente, “proferir voto de qualidade nas decisões do Plenário, para as quais o Regimento Interno não preveja solução diversa, quando o empate na votação”. O voto de qualidade do presidente, como facilmente se percebe, não é mecanismo de aplicação absoluta, mas uma regra geral, que admite previsões específicas em sentido diverso. Em matéria penal, se houver empate, não pode ter incidência o inciso IX do artigo 13, ante a ressalva nele contida: os casos em que se preveja solução diversa. Ao se decidir sobre a culpa ou inocência de um acusado, há previsão diversa, não no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, mas na Constituição, cujo artigo 5.º, caput, inciso LVII, assegura: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Em outras palavras, não há necessidade de o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal estabelecer disciplina legal diversa, afastando a regra do voto de qualidade de seu presidente, para o caso de empate no julgamento de ação penal condenatória de competência originária, porque a absolvição se impõe por ser a única hipótese técnica de manutenção do estado inicial de inocência, assegurado constitucionalmente. O inciso LVII do caput do artigo 5.º da Constituição é a previsão de “solução diversa” a que se refere o inciso IX do artigo 13 do RISTF.
A doutrina tem ressaltado que a presunção de inocência possui duplo aspecto, de regra probatória, que impõe o in dubio pro reo, como solução para dúvida sobre fato penalmente relevante no processo penal, e como regra de tratamento do acusado, que impede que a lei ou o juiz dê a quem é apenas réu em ação penal tratamento equivalente àquele dado ao condenado por sentença transitada em julgado.
Há, porém, uma terceira face da presunção de inocência, enquanto garantia política de qualquer cidadão. A presunção de inocência assegura o direito à liberdade de todo indivíduo, antes e independentemente de qualquer processo penal. Todos nascem livres e têm a liberdade entre seus direitos fundamentais. Tal direito, contudo, não é absoluto. A liberdade pode ser validamente restringida. Para tanto, o sistema de garantias fundamentais exige que haja um fato definido legalmente como crime (artigo 5.º, inciso XXXIX), por lei anterior à sua prática (artigo 5.º, XL), que seja objeto de julgamento após observância de um devido processo legal (artigo 5.º, LIV), que somente poderá ter resultado condenatório quando um conjunto de provas licitamente produzidas (artigo 5.º, LVI), comprove, além de qualquer dúvida razoável, a existência de um crime e a sua autoria (artigo 5.º, LVII). Respeitado esse modelo de garantias do processo, o cidadão livre poderá vir a ser privado de sua liberdade.
Nesse conjunto de garantias, o artigo 5.º, inciso LVII, da Constituição assegura a todo indivíduo um prévio estado de inocência, que somente pode ser afastado se houver prova plena do cometimento de um delito. A sentença condenatória transitada em julgado muda o status inicial de inocente, para condenado. O direito de liberdade, antes plenamente exercido, se transforma em direito de exercício temporalmente privado. Por outro lado, a sentença absolutória nada muda. A improcedência do pedido - pouco importa se por prova plena da inocência ou decorrente de estado de dúvida – é simples reafirmação do estado inicial de inocência, assegurando que o então acusado possa continuar a exercer o direito de liberdade em sua plenitude. O ponto fundamental é que, como explica Illuminati, presumir inocente um acusado quer dizer que a hipótese a ser verificada, mediante o procedimento probatório, é a culpa; logo, se o acertamento falhar, não pode ser reconhecida senão a situação inicial: a inocência!
No caso de empate na votação do órgão colegiado, não houve condenação. O empate não transforma o inocente em culpado. A hipótese a ser acertada não atingiu o resultado positivo necessário para alterar o status de inocente! Se há empate, a tese condenatória não venceu. A imputação não foi considerada provada. As posições individuais pelo resultado condenatório não somam força suficiente para retirar o indivíduo de sua posição inicial. Mantém-se o estado inercial da inocência.
Diferente é a situação de empate no habeas corpus em que há previsão do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal no sentido de que, se houver empate, prevalece a posição mais favorável ao paciente. No primeiro caso, tem-se uma ação penal condenatória, cujo resultado positivo poderá levar à superação do estado inicial de inocência, com a restrição legítima da liberdade de locomoção. Porém, no habeas corpus, o direito à liberdade assegurado inicialmente pelo estado de inocência já sofreu restrição ou está ameaçado de sofrê-la, mas há a alegação de que existe um constrangimento ilegal. Não se trata, pois, de hipótese em que se pede uma tutela condenatória, mas de um remédio para a tutela da liberdade. Não se quer transformar inocência em culpa, ou liberdade em prisão. A liberdade já se transformou em prisão, ou está ameaçada de nela se converter. O que se quer é restabelecer a liberdade ou evitar a sua restrição.
Logo, é preciso definir o que fazer em caso de empate, pois o estado atual será a prisão e não a liberdade! Nesse caso, legalmente, o RISTF optou pela preservação da liberdade. Não se trata, porém, de aplicação do in dubio pro reo enquanto manifestação da presunção de inocência, mas de in dubio pro libertate. Como explica Canotilho “um limite material restritivo da liberdade de conformação da prova pelo legislador é constituído pela especial dignidade e importância atribuídos a determinados bens constitucionais (vida, liberdade, integridade física). Isso justifica que quando alguns direitos invioláveis estejam sujeitos a restrições e essas restrições pressuponham a existência de determinados factos acoplados a juízos de prognose, o ónus da prova pertence não a quem invoca o direito mas a quem cabe decretar as restrições” .
Em suma, e voltando ao tema das ações penais originárias, no caso de processos penais de competência de tribunais, se a votação terminar empatada, a única solução que se compatibiliza com a presunção de inocência, enquanto garantia política do cidadão, é a manutenção do seu estado inicial de inocente, assegurando seu direito à liberdade. Qualquer outra solução violará o artigo 5.º, caput, inciso LVII, da Constituição.
 
Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró é mestre, doutor e livre-docente em Direito Processual Penal pela USP. Professor Associado de Direito Processual Penal da USP.
 
Revista Consultor Jurídico, 22 de outubro de 2012
 
FONTE: CONJUR

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

"A revolta das bactérias"

Caros,
em razão do encontro com as atuais reflexões, colaciono "parte" da coluna semanal do Prof. LENIO STRECK no CONJUR, publicada ontem.

Vale a pena, a leitura e a reflexão.

Quem quiser lê-la na íntegra, acesse
 
Prof. Matzenbacher


_____________________

[...]
 
A revolta das bactérias
Mientras tanto, como pensar que “agora vai”? O julgamento do mensalão deve estar provocando “pensamentos mágicos” na população, a ponto de os próprios ministros estarem preocupados com o uso descontextualizado de algumas teses exsurgidas do julgamento, por exemplo, o problema do conceito de lavagem de dinheiro (lembremos a discussão levantada pelo Min. Marco Aurélio, na sessão do dia 11.10.2012). Parcela mais moralista da sociedade — e não estou dizendo que esta não esteja bem intencionada — acredita em certo imaginário em que as ficções se tornam realidade. É como o sujeito que, ciente de que a caixa de leite só vale até a data X, toma-a um ou dois minutos antes da meia-noite, como se as bactérias que azedarão o leite estivessem convocadas para uma assembleia geral à meia-noite e um segundo. Ou o pai, positivista da cepa, que, na praia, instrui seu filho para que somente se banhe na parte da praia que fica do lado não poluído, uma vez que há uma corda separando os “dois tipos de água”...
Quando foi proclamada a Constituição de 1988, alguém pensou que, no dia seguinte, os professores passassem a fazer “filtragem” do velho ordenamento, falando da “relação texto-norma”, “recepção”, etc.? Ora, passados 24 anos e na maioria das salas de aula nem isso fazem.[2] Hoje, o que vemos é a proliferação de literatura jurídica de quinta categoria. Permito-me repetir uma frase (nada mais inédito do que o que já foi publicado, como diz bem Umberto Eco) de mais de década: parcela considerável do material didático utilizado nas salas de aula das Faculdades de Direito e dos cursinhos de preparação deveria ter uma tarja, igualzinha a das carteiras de cigarro, abaixo da fotografia de um utente com cara de besta: “O uso constante desse material fará mal a sua saúde mental”. Ou alguém pensa que haverá um novo amanhã ou um hoje renovado, quando, até mesmo nas Faculdades de Psicologia, estuda-se com resumos? Sim, meninos e meninas, eu vi um desses nas mãos de uma aluna de Psicologia: resumo da Gestalt... Pensei: estamos perdidos. Se eu encontrar um estudante de Medicina com um resumo do tipo “fibrilação atrial simplificada” (eu sou um fibrilado crônico), fugirei para a Ilha do Robinson Cruzoé, levando um Código Civil debaixo do braço... Vai que cheguem outros náufragos e eu necessite lhes dizer que “a ilha tem dono”... E que teve um aluvião... (ou seria “uma aluvião”? há professores que discutem isso em sala de aula – trata-se de um instituto hermafrodita). E invocarei a enfiteuse... Enfim!
Em síntese: Não há mágica a ser feita. Trata-se de um longo processo de aprendizado e insistência em alguns pontos que tocam a fundo nas origens do problema que assola o país. Nos mais diversos campos. De tantos séculos de latifúndio e práticas patrimonialistas até os dias de DM (depois do mensalão)... Este é o fardo a carregar. Nesse fardo, inclua-se o decreto que a ministra da Cultura “baixará” sobre “projetos exclusivamente para negros” (se é “só para negros”, então não há cotas, pois não?). Logo, logo, haverá edital do CNPq, na mesma linha. A ministra fará escola. Pois é.
Por isso, Luis Alberto Warat perguntava: Por quien cantan las sirenas? As sereias cantariam por quem? São tantos os cantos...!
(grifos meus)

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Uruguay descriminaliza o aborto

Caros,
vejam o exemplo do URUGUAY!!! Um país com pouco mais de 3 milhões de habitantes, se mostrando o mais progressista da América Latina. Esse ano, começou com a questão do Presidente MUJICA defendendo a legalização e monopólio estatal da maconha (projeto em trâmite). Agora, a descriminalização do aborto aprovada no Senado (já tinha sido aprovado na Câmara)!
Como disse MARIO VARGAS LLOSA: "Quem teria imaginado que, sob um governo da Frente Ampla (coalização de Mujica), que parecia tão radical, um presidente que foi guerrilheiro, (o Uruguai) é novamente um modelo de legalidade, liberdade, progresso e criatividade, um exemplo que os demais países latino-americanos deveriam seguir". E é verdade tchê!
Vejam no projeto aprovado (abaixo), que as mulheres poderão interromper a gravidez até a 12ª semana, devendo ser atendidas previamente por uma equipe multidisciplinar composta por ginecologista, assistente social e psicóloga. O cumprimento desses requisitos (maiores detalhes no relatório do projeto abaixo), tal como disposto no texto normativo, é obrigatório, exceto quando se tratar de casos de má-formação fetal, a mulher for vítima de violência sexual e correr risco de morte.
E o principal: é uma questão de saúde, logo, a ser atendida pelo poder público, sendo que, considerado um ato legal, a clandestinidade para esse tipo de "serviço" será, com certeza, severamente reduzido, evitando que mulheres resolvam faze-lo sem informações e com sérios riscos à vida.
ESTADO LAICO. 
Dá-lhe Uruguay!

Prof. Matzenbacher

Congreso Nacional del Uruguay, Montevideo - Janeiro 2012

Senado aprobó despenalizar el aborto por 17 votos en 31

La Cámara de Senadores votó de forma afirmativa la ley de despenalización del aborto. La norma fue aprobada con los 17 votos de los senadores del Frente Amplio y del nacionalista Jorge Saravia.

La ley ya fue aprobada por la Cámara de Diputados el mes pasado. 

Ahora el texto deberá ser promulgado por el Poder Ejecutivo. En la anterior legislatura se aprobó una ley similar, pero el entonces presidente Tabaré Vázquez vetó el artículo referido al aborto. 

De esta forma Uruguay se convirtió en el primero país de América Latina en despenalizar el aborto luego de Cuba. En ciudad de México (DF), el aborto es legal pero no así en el resto del país. 

Durante el debate previo el senador nacionalista Jorge Larrañaga anunció que comenzaría las gestiones para derogar esta ley. Además algunos sectores del Partido Nacional comenzarán a recolectar firmas para convocar un plebiscito derogatorio.

Cuando el vicepresidente Danilo Astori anunció que la ley fue aprobada algunos concurrente a las barras del Senado comenzaron a aplaudir. Inmediatamente se desalojaron las barras.

Puede leer el texto completo de la ley votada hoy en el siguiente link 

FONTE: EL PAÍS (em 17/10/2012)
http://www.elpais.com.uy/121017/ultmo-670224/ultimomomento/senado-aprobo-despenalizar-el-aborto-por-17-votos-en-31/


quarta-feira, 17 de outubro de 2012

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

DIA DO PROFESSOR

No dia de hoje, para parabenizar meus Colegas PROFESSORES e agradecer aos alunos e ex-alunos pela nossa existência, uso as palavras de Fernando Pessoa para homenagear toda a Classe DOCENTE...
"Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
'Navegar é preciso, viver não é preciso'.
Quero para mim o espírito d'esta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:
 
Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande,
ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a minha alma a lenha desse fogo.
 
Só quero torná-la de toda a humanidade;
ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso.
Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue
o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a evolução da humanidade.
É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça."
 
 
MUITO OBRIGADO Germano Schwartz, Renata Almeida da Costa, Maria Helena Almeida da Costa, Luiz Fernando Pereira Neto!!! Aury Lopes Jr., Salo de Carvalho, Ruth Gauer, Luciano Feldens, Alexandre Morais da Rosa, Fábio Roberto D'ávilla, Celso Gonçalves, Edmar Daudt, Rogrigo Azevedo, Eugênio Pacelli de Oliveira.
 
PARABÉNS aos Colegas da UNIRON, de Passo Fudo, de POA e dos outros rincões desse Brasil!!!
 

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Quanto (tempo) vale uma Defesa?


Caros,
 
vejam esse Acórdão do STJ, declarando a nulidade de uma sessão plenária do Tribunal do Júri porque o "Colega Advogado" fez uma defesa de apenas 4 minutos(?!). É sério viu?!
 
Mas como não me aquieto, me vieram à mente algumas questões:
 
1º) No Tribunal do Júri, tal como assegurado na CF/88, não é assegurada (apenas) a AMPLA defesa, mas a PLENITUDE DE DEFESA, correto? Ou minha CF/88 está desatualizada?!
 
2) Advogado dativo (ou constituído, ou Defensor Público) tem possibilidade de exercer a DEFESA de alguém acusado de homicídio em apenas 4 minutos? (Estamos falando da vida/liberdade de uma pessoa!) Ou estamos diante de uma ju(ris)dicialização via 140 caracteres?!
 
3) Notem essa alegação do MP: "fácil será a todo e qualquer advogado de réu, por mais perigoso que este seja, libertar o seu cliente: bastará pouco ou nada alegar nas oportunidades em que o STJ considera essenciais a sua manifestação". Ainda há quem acredite que o MP é imPARCIAL?! Advogado de Réu?! Existe outro "tipo" de Advogado*?! Não são mais fatos que são julgados, mas pessoas?!
 
4) É impressionante a bitolação paleopositivista (por parte do MP, do Judiciário e até de Advogados!) do sistema de nulidades no Brasil, com a "clássica" diferenciação entre nulidades absolutas e relativas, a qual remonta à década de 40, do século passado(!). Numa "fala" (porque me recuso a escrever a palavra defesa, pois contida nela está todo o significante e o significado) de 4 minutos por parte do causídico, é preciso provar o prejuízo à defesa do Réu para ser reconhecida a nulidade? POR FAVOR TCHÊ, em 4 minutos, nem a saudação é possível concluir(!).
 
5) Outra alegação do MP: "o Paciente tende a ser condenado novamente". Uau. Então pra que processo? Pra que Juiz? Pra que Advogado? Vamos deixar o (excesso de) convencimento para os órgãos de persecução, MP e Polícia. Resolvido. Economia processual (chego a me arrepiar de medo quando escuto isso).
 
6) O Réu estava respondendo o processo há 4 anos privado de sua liberdade e agora (recém) foi o 1º plenário do Tribunal do Júri. O excesso de prazo da prisão preventiva foi reconhecido somente no STJ. E ainda tem aqueles que pensam que os Tribunais e Magistrados (nos) defendem [(de) quem?].
 
É BRABO TCHÊ.
 
Uma DEFESA vale... a luta até o final pela efetividade das garantias processuais daquele que se senta no banco dos réus.
 
Ainda bem que o STJ fez o mínimo, não possível, mas necessário. Ponto!
 
 
Prof. Matzenbacher

* Na verdade existe né A.A.?! Ao término de uma adiência dia desses, o Magistrado se vira para um dos Advogados de Réu e diz: "- ah, sabia que conhecia o senhor, era da Defensoria Pública, mudaste de lado agora?" (SÓ A INCREDULIDADE PARA COMPREENDER!).



terça-feira, 9 de outubro de 2012

TJSP - HC. Conversão da prisão em flagrante em preventiva. Paciente amamentando filho de 6 meses. Aplicação de Prisão Domiciliar.

Caros Acadêmicos da Turma D38,
aqui está um acórdão proferido pelo TJSP concedendo a ordem num habeas corpus para possibilitar a execução da medida cautelar pessoal de prisão preventiva em regime domiciliar, ou seja, determinando a aplicação da prisão domiciliar disposta no artigo 318 do CPP, com a nova redação trazida pela Lei 12.403/2011.
LEIAM e REFLITAM sobre o caso...

Prof. Matzenbacher



TJRO - HC. Concessão de liminar. Crime de tráfico. Fundamentação abstrata. Direito de apelar em liberdade.

Caros Acadêmicos da Turma D38,
aqui está uma decisão monocrática de concessão de liminar em habeas corpus para assegurar a Paciente/Ré o direito de apelar em liberdade, mesmo respondendo o processo segregada de sua liberdade. LEIAM e REFLITAM sobre o caso...

Prof. Matzenbacher

PS: os grifos são meus, para chamar a atenção para alguns pontos específicos.


DESPACHO DO RELATOR

Habeas Corpus nrº 0011459-30.2011.8.22.0000

Paciente: Laiana Naiz Silva do Nascimento
Impetrante (Defensor Público): Defensoria Pública do Estado de Rondônia
Impetrado: Juízo de Direito da 2ª Vara Criminal da Comarca de Guajará-Mirim - RO
Relator:Des. Miguel Monico Neto
Vistos. 

A Defensoria Pública do Estado de Rondônia impetra habeas corpus com pedido de liminar em favor de Laiana Naiz Silva do Nascimento, presa em flagrante no dia 15/03/2011 pela prática do crime de tráfico ilícito de entorpecentes e mantida a segregação cautelar após sentença condenatória ao fundamento de que a manutenção da custódia cautelar é uma forma de proteger o meio social seriamente ameaçado com a disseminação do vício, e a própria credibilidade da justiça. 

A impetrante informa que a paciente foi condenada pelo tráfico ilícito de entorpecentes à pena de 01 ano, 11 meses e 10 dias de reclusão em regime fechado. Aduz inexistir fundamentos acerca da necessidade e conveniência da prisão para apelar e que com a apreciação do recurso possivelmente será possibilitado a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos. Requer a expedição, in limine, de alvará de soltura. 

É o breve relatório. Decido. 

Como cediço, a concessão de liminar em sede de habeas corpus é medida excepcional, que exige a constatação inequívoca de manifesta ilegalidade, vedada a análise acurada de provas, consoante assentado solidamente pela jurisprudência (STF HC 103142). 

A impetrante objetiva o reconhecimento do direito à paciente de apelar em liberdade. O art. 5º, LXI, da CF/88, dispõe sobre a prisão “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”. 

Por sua vez, o parágrafo único do art. 387 do CPP, reforça a necessidade de fundamentação da prisão cautelar: 

Parágrafo único. O juiz decidirá, fundamentadamente, sobre a manutenção ou, se for o caso, imposição de prisão preventiva ou de outra medida cautelar, sem prejuízo do conhecimento da apelação que vier a ser interposta. 

Acerca do tema, leciona Eugênio Pacelli de Oliveira: 

E por ordem fundamentada não se pode entender, evidentemente, a motivação da pronúncia ou da sentença condenatória; essa se refere apenas às razões da condenação e da pronúncia, mas não à necessidade da prisão. É preciso, então, que a fundamentação seja expressa quanto à indispensabilidade da privação provisória da liberdade. (Curso de Processo Penal. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2009, 11ª Edição, p. 467). (g.n.) 

Nota-se que a prisão cautelar deve obrigatoriamente ser devidamente fundamentada, com expressa indicação de elementos concretos aptos a justificar a medida extrema de segregação do condenado, de modo a permitir o controle da sua legitimidade, sob pena de configuração de constrangimento ilegal por parte da autoridade judiciária. 

Na hipótese, o ato coator foi assim fundamentado (fls. 82-83):

V DEMAIS DELIBERAÇÔES Uma vez firmado o juízo condenatório e seus corolários, fica em destaque a periculosidade dos condenados, consubstanciada no modus operandi e especialmente no envolvimento de um adolescente com o tráfico de entorpecentes.

Sem dúvida, quem se dispõe a traficar, como consequência está a fomentar em grande parte uma série de outros crimes, tais como furtos, roubos etc., já demonstra conhecimento dos meandros do crime.
 
Nesse sentido, repetida e cediçamente, tem decidido o STJ:

PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS E ASSOCIAÇÃO PARA O ATRÁFICO. 1. LIBERDADE PROVISÓRIA. SIGNIFICATIVA QUANTIDADE DE DROGA. ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA. RISCO PARA ORDEM PÚBLICA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. ÊNCIA. 2. PRISÃO DOMICILIAR. DIABETE E HIPERTENSÃO. NECESSIDADE TRATAMENTO EXTERNO. AUSÊNCIA. ILEGALIDADE. NÃO RECONHECIMENTO. 1. A necessidade da custódia cautelar restou demonstrada, com base em dados concretos dos autos, conforme recomenda a jurisprudência desta Corte, estando o decreto prisional fundamentado na significativa quantidade de droga apreendida, que seria negociada por estrutura organizada, a evidenciar, portanto, risco para ordem pública. 2. As condições pessoais favoráveis, tais como primariedade, bons antecedentes e residência fixa não são suficientes para garantir ao paciente a revogação da prisão preventiva se há nos autos elementos que recomendam a manutenção da custódia cautelar. 3. A inserção daquele segregado provisoriamente em prisão domiciliar depende de comprovação da imprescindibilidade do tratamento externo, o que não deflui de quadro de diabete e hipertensão, males que podem ser, medicamentosamente, controlados no interior da unidade penitenciária. 4. Ordem denegada. (Habeas Corpus nº 120121/SC (2008/0247001-0), 6ª Turma do STJ, Rel. Maria Thereza de Assis Moura. j. 03.09.2009, unânime, Dje 21.09.2009).

Tudo isso está a recomendar a manutenção de suas custódias como forma de acautelar o meio social, seriamente ameaçado com a disseminação do vício, e a própria credibilidade da justiça.
 
Todavia, do excerto da sentença penal condenatória que negou a paciente o direito de apelar em liberdade não se verificam razões concretas e idôneas hábeis a manter a segregação cautelar, mas, data venia, meras conjecutras genéricas.
 
Com efeito, da própria sentença (fls. 08-20), colhe-se que a paciente foi condenada à pena-base no mínimo legal, aplicada a causa especial de diminuição de pena (art. 33, § 4º, da lei de drogas) em seu grau máximo 2/3 (dois terços), resultando em 01 ano, 11 meses e 10 dias de reclusão e 195 dias-multa considerando a causa de aumento de pena relativo ao envolvimento de adolescente.
 
A paciente foi presa em flagrante em 15/03/2011, mantida presa pela sentença (fl. 20) foi-lhe negado o direito à substituição de sua pena privativa de liberdade por restritiva de direitos ao fundamento de que as circunstâncias do caso não recomendavam.
 
Observa-se, entretanto, que a paciente foi beneficiada com a causa especial de redução da pena em seu grau máximo (tráfico privilegiado) e lhe foi negada a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito por tratar-se de tráfico de entorpecentes, com a observação de que mesmo que ainda que seja a primeira vez que é processada.
 
Nessa esteira, há clara contradição, pois com a Lei n° 12.403, em vigor desde julho passado, foram dadas novas alternativas à prisão para casos em que esta se mostre muito drástica e a negativa de liberdade provisória pela simples referência ao impedimento legal previsto na Lei de tóxicos não mais tem sentido quando existentes estas novas alternativas.
 
Ademais, importante registrar que o STJ, seguindo orientação do STF, entende possível a substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direitos, sempre que preenchidos os requisitos legais tendo em conta as particularidades do caso concreto.
 
Assim, a conversão deve pautar-se nas particularidades do caso em analise e não só em razão da gravidade abstrata do crime do comércio ilícito de entorpecentes, como anotado na sentença. Neste sentido:
 
STJ - Drogas (normas para repressão). Conversão da pena privativa de liberdade em restritivas de direitos. Conversão (possibilidade). 1. Não são de hoje nem de ontem, mas de anteontem os apelos no sentido de que se deve, por uma série de razões de todos amplamente conhecidas, incentivar sejam adotadas sanções outras para os denominados delinquentes sem periculosidade. 2. As penas devem visar à reeducação do condenado. A história da humanidade teve, tem e terá compromisso com a reeducação e com a reinserção social do condenado. Se fosse doutro modo, a pena estatal estaria fadada ao insucesso. 3. O agravamento das penas, bem como a adoção de regime mais rigoroso para o seu cumprimento, por si sós, não constituem fator de inibição da criminalidade. 4. Admite-se, em hipóteses tais, o emprego do art. 44 do Cód. Penal; em caso assemelhado, ver o HC-32.498, de 2004. 5. De mais a mais, se a progressão de regimes (cumprimento da pena) tem a ver com a garantia da individualização da pena, de igual modo, é óbvio, a substituição as penas privativas de direitos substituem as privativas de liberdade. 6. Ordem concedida, admitindo-se a conversão de uma noutra pena menos gravosa. (HC 118776/RS, Rel. Ministro NILSON NAVES, SEXTA TURMA, julgado em 18/03/2010, DJe 23/08/2010).  
Logo, conquanto em sede de habeas corpus não se discuta prova nem se avalie circunstâncias subjetivas, que impõem sempre um exame mais acurado dos autos, inexistente na estreita via do writ, não há se negar que a solução comporta uma análise diferenciada, sobretudo porque à paciente foi pela sentença reconhecido o redutor máximo.

De fato, conquanto a sentença tenha reconhecido expressamente que as circunstâncias subjetivas da paciente são favoráveis, prendeu-se apenas na gravidade abstrata do crime de tráfico para mantença da prisão, o que se mostra contraditório, sobretudo quando existentes outras alternativas.
 
Com efeito, é claro que a decisão de mantença da prisão carece de fundamentação idônea a amparar-lhe, pois não há indicativos da periculosidade pessoal ou outro indicativo de elementos concretos aptos a manter a segregação cautelar da paciente.
 
Aliás, não se observa possibilidade de que, em liberdade, possa a paciente colocar em risco a ordem pública, porque, como registrado na sentença (fl. 20), sequer registra antecedentes.
 
E, como já mencionado, a segregação não pode se pautar simplesmente na gravidade abstrata do crime praticado STJ - HC n. 135.594/SP, Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, DJe 29/11/2010. As deletérias consequências do tráfico são inerentes ao tipo.
 
Isso posto, concedo a liminar, servindo esta decisão como alvará de soltura, se por outra razão a paciente não estiver presa.
 
Suficientemente instruído, remetam-se os autos à Procuradoria de Justiça para parecer.
 
Porto Velho, 03 de novembro de 2011.

Desembargador Miguel Monico Neto.
Relator

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Justiça do Canadá descriminaliza ocultação de HIV antes do sexo

E lá fora, a jurisprudência evolui...

Justiça do Canadá descriminaliza ocultação de HIV antes do sexo

A Suprema Corte do Canadá descriminalizou nesta sexta-feira a ocultação do vírus HIV antes das relações sexuais, quando não existirem possibilidades reais de transmitir o vírus causador da Aids e for usado preservativo.

"Diante da ausência da possibilidade real de transmissão do HIV, a omissão de revelar seu caráter soropositivo não constitui uma fraude que adultera o consentimento nas relações sexuais", determinou a corte. A decisão revê outra anterior adotada pela mesma corte em 1998, segundo a qual os indivíduos tinham a obrigação de revelar serem soropositivos antes de manter relações sexuais em que presumisse haver um "risco grande" de transmissão. 

A desobediência implicava em sofrer a acusação de abuso sexual com agravantes, que poderia resultar em uma pena de prisão perpétua. Autoridades de saúde argumentaram que a lei estigmatizava as pessoas infectadas com HIV/Aids, e ao rever a antiga norma, a máxima instância judicial canadense reconheceu a existência de avanços médicos que possibilitam lidar com o vírus com mais eficácia do que antes.

"O HIV é inquestionavelmente sério e traz risco de vida", admitiu a corte. "Embora possa ser controlado com medicação, o HIV permanece uma infecção crônica e incurável que, se não for tratada, pode levar à morte", acrescentou. "Não revelar (o HIV) equivale a cometer fraude quando o demandante considerar que não teria consentido (a relação) se tivesse sabido que o acusado era soropositivo", destacou.

Contudo, concluiu, se a pessoa submetida a tratamento com medicamentos antirretrovirais tiver baixa carga viral no momento da relação e usar preservativo, o risco de transmissão e os danos ao corpo diminuem significativamente. A Justiça considerou dois casos em sua decisão: a absolvição de uma mulher de Quebec por abuso sexual com agravante por fazer sexo enquanto sua carga viral era indetectável e restaurar a culpa de um homem de Winnipeg por manter relações sem preservativo com outros quatro homens e sem revelar que era soropositivo.

FONTE: Terra (em 05/10/2012) http://noticias.terra.com.br/mundo/noticias/0,,OI6206493-EI294,00-Justica+do+Canada+descriminaliza+ocultacao+de+HIV+antes+do+sexo.html

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Aniversário da CF/88


HOJE A CONSTITUIÇÃO FEZ 24 ANOS DE IDADE E CONTINUA CONSTITUINDO POUCO: JUIZ SOFRE ESPANCAMENTO MIDIÁTICO

Em geral tenho evitado me manifestar em situações assim, mas realmente não posso deixar de comentar o absurdo espancamento midiático que o juiz Mauro Caum Gonçalves está sofrendo por parte da mídia gaúcha- em pleno aniversário da CF/1988 - por ser "apenas um juiz..." É a velha cultura inquisitória que não compreende o papel do juiz no marco constitucional-democrático.

Em apertadíssima sintese, após a realização de uma prisão em flagrante por crime de roubo (onde resultou ferida uma médica, portanto, um crime grave e isso não se nega), foi elaborado o respectivo auto de prisão em flagrante e encaminhado para o Juiz. Ora, desde sempre se sabe que o flagrante é pré-cautelar e não prende por sí só. Essa situação foi muito bem disciplinada pela lei 12.403 e a nova redação do art. 310. O juiz recebeu o APF e diante da ausência de pedido de prisão preventiva por parte do MP ou representação da autoridade policial, concedeu liberdade provisória mediante determinadas condições. O ponto da discórdia foi o seguinte (em sintese): poderia (ou deveria) o juiz converter a prisão em flagrante em prisão preventiva sem pedido do MP (de ofício)? ELEMENTAR QUE NÃO.

Há que se observar o seguinte: a tal conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva equivale, fática e juridicamente, ao ‘decretar de ofício’ a prisão preventiva. Ou seja, o resultado final da conversão é equivalente ao decretar a prisão preventiva de ofício. E, neste caso, além de clara violação das regras básicas do sistema acusatório-acusatório (vinculado à imparcialidade, por óbvio), viola-se frontalmente a regra insculpida no art. 311, que somente autoriza a prisão preventiva decretada de ofício na fase processual (um erro, registre-se), nunca na fase pré-processual. Dessarte, não precisa maior esforço para compreender que diante de uma prisão em flagrante, se houver requerimento do Ministério Público ou representação da autoridade policial, poderá o juiz, após análise da estrita necessidade, converter a prisão em flagrante em preventiva. Contudo, se não houver prévio pedido, não poderá o juiz converter o flagrante em preventiva, pois vedada está a decretação da prisão preventiva de ofício.

Portanto, para além do disposto no art. 311, há que se compreender o papel do juiz criminal no marco da CF/1988, à luz do sistema acusatório-constitucional, como verdadeiro garantidor das regras do jogo e não um justiceiro que prenda de ofício, produza prova de ofício, etc. Vivemos tempos dificeis, em que com certeza é muito mais fácil ter uma postura punitivista do que fazer valer as regras do devido processo. Felizmente existem juízes (independentes) no Brasil...

por AURY LOPES JR. via Facebook