quinta-feira, 27 de setembro de 2012

PARAÍSOS ARTIFICIAIS: a “estética” das drogas pela literatura e pelo cinema.



Provocado pela Revista CULT 167 (abril 2012), onde Marcus Prado (Diretor de Cinema) deu uma pequena entrevista sobre o lançamento de seu filme “Paraísos Artificiais”, me interessei por assisti-lo. Mas antes, decidi que leria o livro o qual originou a produção cinematográfica. Então, em junho, em uma viagem a Brasília, comprei o livro “Paraísos Artificiais” de CHARLES BAUDELAIRE. O livro é dividido em 3 partes: “Poema do Haxixe”, “Um Comedor de Ópio” e “Do Vinho ao Haxixe” (que na verdade é um apêndice). A 1ª parte traduz as experiências pessoais de BAUDELAIRE com a droga quando vivia em Paris, a 2ª parte trata-se de uma tradução e leitura feita por BAUDELAIRE sobre o livro “Confissões de um Comedor de Ópio” de THOMAS DE QUINCEY e a 3ª parte é na verdade um poema em prosa, onde BAUDELAIRE faz uma relação dos efeitos do vinho e do haxixe.
O filme é uma (re)leitura de BAUDELAIRE, no duplo sentido, literalmente. Como não tinha terminado de ler o livro quando assisti, e como o filme não era a cinematografia do livro em si, fiquei curioso (após terminar de ler o livro na madrugada da penúltima 2ª-feira – 207 pp. – mas uma leitura “não-leve” vamos dizer assim – vai ver se eu tivesse uma experiência [além do vinho] seria diferente) para ver o que a “crítica do filme” sobre essa relação entre BAUDELAIRE e a visão do diretor Marcus Prado.

Assim, digitei no Google “paraísos artificiais + crítica” só para ler a “crítica” e sanar minha curiosidade. Apareceu “102,000 results” (céticos: testem.). Dos 10 que aparecem por página, abri 5 deles:

Crítica: Paraísos Artificiais

Paraísos Artificiais

Paraísos Artificiais | Crítica

Crítica: Paraísos Artificiais

Paraísos Artificiais

E pasmem (ou não): simplesmente, dessas 5 que abri e li (pois me cansei de abrir mais e perder tempo lendo mais bobagem), nenhum (dito) “crítico” sequer citou (logo, por pura ignorância – só pode!) BAUDELAIRE ou sua obra “Paraísos Artificiais”. Para todos, indistintamente, o filme é sobre drogas, sexo e música eletrônica, ou seja, uma visão neohippie em pleno século XXI. “Pelamorde” como diria um amigo...
Bom, é aquela velha história: as pessoas escrevem o que querem com base no que acham, no Google(!). É surreal esse processo de “formação cultural” e “definição de verdades” a partir do Google. Como disse BAUMAN: "felizmente, dispomos hoje de algo que nossos pais nunca puderam imaginar: a internet. [...] Felizmente? Bem, talvez nem tanto, pois o pesadelo da informação insuficiente que fez nossos pais sofrerem foi substituído pelo pesadelo ainda mais terrível da enxurrada de informações que ameaça nos afogar, nos impede de nadar ou mergulhar (coisas diferentes de flutuar ou surfar). Como filtrar as notícias que importam no meio de tanto lixo inútil e irrelevante? Como captar as mensagens significativas entre o alarido sem nexo? Na balbúrdia e sugestões contraditórias, parece que falta uma maquina de debulhar para separar o joio do trigo na montanha de mentiras, ilusões, refugo e lixo" (44 Cartas do Mundo Líquido Moderno).

Creio que “crítica” não é selecionar partes do filme e escrevê-las, descrever os personagens, falar da beleza (ou não) dos lugares onde o filme foi produzido. Também não se pode (ou deve) “deixar que o público tire suas próprias conclusões” a partir do que não foi dito ou visto. Criticar é entrar em contato com o objeto e analisá-lo (analisando-se também, é óbvio – lembram que a Teoria Especial da Relatividade de EINSTEIN é de 1905?!), traduzindo as impressões pessoais advindas dessa relação indivíduo-objeto-indivíduo.

Bom, como nunca usei drogas (mas também não sou careta viu?!), porque simplesmente até hoje não tive a vontade (e tenho o medo inconsciente), não posso escrever com base na “experimentação” (INGENIEROS), mas somente a partir da observação, seja direta, ou indireta (como no caso, livro e filme). Então, perdoem-me pela minha “limitação” ao lerem as próximas linhas.
Somos obrigados a ser felizes? Em caso afirmativo, há padrões preestabelecidos para atingir tal obrigação?

Me parece que a resposta para ambas perguntas é negativa. Assim, se a resposta para a primeira é negativa, a tentativa de definição (“dar fim” – lembrando das aulas de RICARDO TIMM DE SOUZA no Mestrado em Ciências Criminais da PUCRS) de que forma ela pode/deve ser alcançada é sempre autoritária (veja-se, por exemplo, as religiões). Então, aqueles que pensam que as drogas devem ser proibidas e não podem ser consumidas (em completa fantasia, já que “definidas” por uma Portaria do Ministério da Saúde quais substâncias são autorizadas!), a partir do momento que (pré-)julgam aqueles que as usam, vão achar o livro um verdadeiro absurdo (olvidando-se do principal numa leitura, o contexto histórico), e o mesmo acontecerá com o filme, em que os personagens usam drogas, escutam música eletrônica e fazem sexo (a dois, a três, homo, hétero). Ou seja, a (a)crítica advém exatamente da falta daquilo que deve(ria) reinar nas relações humanas: a alteridade.
Portanto, a partir do momento em que eu parto do meu “local de fala” (BHABHA) e não respeito o Outro a partir do seu próprio local (LEVINAS), ajo com extrema violência pela negação do Outro, enquanto Outro “com todas as suas circunstâncias” (ORTEGA Y GASSET), não sendo possível (pois não nos permitimos) compreender determinado pensar/falar/agir, e por isso a simplicidade (e limitação) do senso comum. Um dos grandes problemas contemporâneos é justamente a reprodução acrítica de falas, pensamentos e ações. “O Belo é mais importante que o Verdadeiro”? (p. 139). A aparência é melhor que a essência?

Pela droga, BAUDELAIRE a mostra como a possibilidade de “um espelho mágico onde o homem é convidado a ver-se belo” (p. 12), quando pela visão de Marcus Prado (diretor do filme), ela é mostrada como “a potência humana”, já que não se deve “abdicar da vontade” (p. 61). Tanto num caso como no outro, os estados alterados ocasionados pelas drogas parecem libertar os grilhões dos pensamentos, das falas e das ações, possibilitando que o inconsciente seja desnudado e os desejos mais íntimos satisfeitos. Enquanto em BAUDELAIRE se atinge o onírico através do uso das substâncias (vide pp. 129-131), possibilitando a criação, na película são com as (pseudo)realidades que nos são reveladas que demonstram a vivência desse estado dionisíaco, em detrimento do apolíneo, da ordem, do belo (definido por quem, né?!).
Se esse mundo “é um mundo de sofrimentos, de luta e de proscrição” (p. 145), seja ecstasy, mescalina e cocaína (filme), ou haxixe, ópio e vinho (livro), ainda que todas essas drogas possibilitem uma “felicidade”, por mais artificial (logo temporária) que seja, é uma possibilidade a partir de uma escolha pessoal das duas formas de se atingir a eternidade: “recompensa ou castigo” (p. 13), como disse BAUDELAIRE.
Enquanto BAUDELAIRE se preocupa com a dependência do artista em relação às drogas já que possibilitam a libertação da criatividade máxima, o filme mostra a possibilidade dessa libertação em diversos sentidos. Não se trata de uma “felicidade artificial”, mas da criação (artificialmente) de um estado anímico em que o prazer sensorial é elevado ao cubo para enaltecer (nos possibilitar sentir) aquilo que já está dentro de nós mesmos, e que ignoramos e reprimimos (conscientemente). Ou simplesmente, revelamos. E essa revelação pode prescindir da “soma” (droga da distopia “Admirável Mundo Novo” de ALDOUS HUXLEY)!

Não estou aqui defendendo o uso (ou não) das drogas, nem para falar de suas conseqüências (graves e devastadoras), que também são citadas no livro e no filme, cada qual a partir de um viés diferente. Estou as visualizando a partir de um ponto de vista estético permissivo a atingir a plenitude de faculdades e sentimentos (humanos, carnais, naturais) sem a espada cortante do superego, já que a “memória poética é fonte infinita de prazeres” (p. 123). Sinceramente, não consegui ver o uso das drogas como “fuga” da realidade, como “fraqueza” dos personagens, tal qual costumeiramente apontado pela telas e pelas (a)críticas (leia-se: senso comum).

Quem já assistiu, esqueça o destino, esqueça o romance do filme. Concentre-se no foco, na busca do prazer, na busca do gozo existencial. Que no caso, tal êxtase é possibilitado (e por vezes alcançado) através do uso de substâncias psicotrópicas, tal como revelado pela literatura e pelo cinema.
Realmente, “o filme não é moralista nem faz apologia” como disse Marcus Prado (na entrevista à Revista CULT) (retirado do site do próprio filme (http://www.paraisosartificiaisofilme.com.br/apresentacao.shtml). Mas sim, expressa a declaração de que “a Morte, que não consultamos para nossos projetos e a quem não podemos pedir sua aquiescência, a Morte, que nos deixa sonhar com a felicidade e com a fama e que não fiz nem sim nem não, sai bruscamente de sua emboscada, e varre de um só golpe de asas nossos planos, nossos sonhos e as arquiteturas ideais onde abrigávamos em pensamento a glória de nossos últimos dias!” (p. 168). Portanto, um brinde (com vinho!) ao VIVER.

Entrevista com o Magistrado RUBENS CASARA (show!)

Caros,
LEIAM essa entrevista com o Magistrado RUBENS CASARA, do BLOG http://naopassarao.blogspot.com.br. Na verdade, muito além de uma análise séria sobre a AP 470, ele nos revela, a partir do seu local de fala, a visão do caos existente entre a "tentação pupulista", o "Judiciário espetacular" e os (nossos) direitos fundamentais, chamando a atenção para os riscos de uma decisão "especial" [para que(m)?] tomada pela alta Corte de Justiça desse país e seus reflexos para a "jurisprudência de 1º Grau".
VALE A PENA!

Prof. Matzenbacher

Rubens Casara: “Risco da tentação populista é produzir decisões casuísticas”


por Conceição Lemes

Nesta segunda-feira 23, o julgamento da Ação Penal 470, o chamado mensalão entrou na nona semana. Muitos juristas o acompanham com preocupação. Alegam que princípios de respeito às garantias fundamentais, como “o ônus da prova cabe à acusação” e “não se pode condenar alguém com base em presunções”, estariam sendo deixados de lado.

“A Ação Penal 470 ilustra bem a encruzilhada em que se encontra o Poder Judiciário. O risco da tentação populista é que passe a produzir decisões casuísticas, para atender às expectativas do que é vendido pelos meios de comunicação como opinião pública”, observa Rubens Casara. “Isso é grave, pois princípios e teorias forjados durante a caminhada da Humanidade acabam esquecidos ou afastados para a produção de decisões direcionadas a dar essa resposta simbólica à sociedade.”

Esse risco aumenta quando as decisões casuísticas são produzidas pela maior Corte de Justiça do Brasil, como na Ação Penal 470, embora não sejam exclusividade dela.

“Acaba virando jurisprudência, pois as cortes inferiores tendem a reproduzí-las”, prossegue Casara. “Esse fenômeno o professor e ministro da Corte Suprema da Argentina Raul Zafaroni chama de comodismo crônico.”

“Ao se espalharem por todo o Judiciário, as teses do STF na Ação Penal 470 acabarão atingindo os cidadãos comuns”, adverte Casara. “São os ‘clientes’ preferenciais do nosso sistema penal que privilegia os que têm posses e condena os sem condição financeira.”

Rubens Casara é juiz da 43ª Vara Criminal do Rio de Janeiro e professor de Direito Penal da Faculdade de Direito Ibmec/RJ. Porém, nesta entrevista ao Viomundo, ele fala a partir de sua percepção como pesquisador do autoritarismo no sistema de justiça criminal.

Segue a íntegra da nossa entrevista:

Viomundo – Qual a sua percepção do julgamento da Ação Penal 470 até o momento?
Rubens Casara – Antes, um parêntese. O Estatuto da Magistratura, que é uma lei cunhada em período autoritário, impede que os juízes se manifestem sobre casos em julgamento. Portanto, falo em tese, em especial a partir do que tenho observado na mídia, em minhas pesquisas e como professor de Direito Processual Penal.
Sobre a sua pergunta, a minha percepção é de que a Ação Penal 470, que a grande mídia chama de “julgamento do mensalão”, ilustra bem a encruzilhada em que se encontra o Poder Judiciário.
De um lado, sua origem aristocrática; um poder conservador, distante do povo, comprometido com quem detém o poder e o capital, e que historicamente sempre foi utilizado para manutenção do status quo, ou seja, como obstáculo à transformação social. Não se pode esquecer que, para parcela considerável dos que sempre detiveram o poder econômico e político, o chamado “caso do mensalão” passou a ser encarado como espécie de vingança pelas derrotas eleitorais impostas pelo Partido dos Trabalhadores.
De outro lado, uma tendência que tem sido chamada de “tentação populista”. Ela se traduz em decisões que buscam agradar a opinião pública, que muitas vezes não passa da opinião publicada pelas grandes corporações que controlam os principais meios de comunicação de massa.
Agora, a tensão entre a origem aristocrática e essa tendência populista está presente em vários julgamentos e não só na Ação Penal nº 470. De igual sorte, existem no seio do Poder Judiciário muitos conflitos, que por vezes permanecem velados.
Enfim, a magistratura é plural, diversas ideologias se fazem presentes. Existem, por exemplo, magistrados que atuam a partir de uma epistemologia e de um instrumental autoritário e outros que adotam posturas e modelos adequados à democracia.

Viomundo — Qual o risco dessa tentação populista?
Rubens Casara – É que as decisões passem a ser produzidas ad hoc.

Viomundo – O que significa?
Rubens Casara – São decisões casuísticas, formuladas para atender às expectativas do que é vendido pelos meios de comunicação de massa como opinião pública. Quando isso acontece é grave, pois princípios e teorias que existem para assegurar o respeito aos direitos e garantias fundamentais, que são conquistas de todos, forjados durante a caminhada da Humanidade, acabam esquecidos ou afastados para a produção de decisões direcionadas a dar respostas simbólicas à sociedade.
Os direitos e garantias fundamentais sempre foram trunfos contra maiorias de ocasião, limites à opressão estatal, o que, em última análise, caracteriza o Estado Democrático de Direito. Só há democracia, em seu sentido substancial, se os direitos e garantias fundamentais são respeitados. Decisões judiciais que afastam, relativizam ou violam os direitos e garantias fundamentais corporificam, portanto, sérias ameaças ao Estado Democrático de Direito.

Viomundo — O que a Ação Penal 470 vai representar mais adiante?
Rubens Casara – Como toda decisão do Supremo Tribunal Federal, a tendência é de que as teses acolhidas durante esse julgamento passem a influenciar a jurisprudência de todos os órgãos do Poder Judiciário. Essa jurisprudência é o que será chamado de legado jurídico desse julgamento.
Se, como sustentam alguns, a Ação Penal nº 470 é um “julgamento de exceção”, uma decisão casuística produzida para agradar parcela da sociedade brasileira, em detrimento de direitos e garantias que normalmente seriam reconhecidos pelo Supremo Tribunal Federal, o risco à democracia é muito grande, uma vez que se está diante de um ato, de ampla repercussão, produzido pela maior Corte de Justiça do Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF).

Viomundo — Por quê?
Rubens Casara — Porque há uma tendência de reprodução, pelas instâncias inferiores, das decisões que são produzidas no Supremo Tribunal Federal. A esse fenômeno, típico da burocratização judicial, o professor e ministro da Corte Suprema da Argentina Raúl Zaffaroni chama de “comodismo crônico”.
Explico: a melhor maneira de se fazer uma carreira rápida no Judiciário é não contrariar a opinião daqueles que têm o poder de anular ou reformar as suas decisões. Os juízes reproduzem as decisões dos seus tribunais e dos tribunais superiores para não terem dores de cabeça na carreira, serem aceitos na classe e conseguirem promoções.
Assim, se, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal adotar as teses da “inversão do ônus da prova em matéria penal” ou da “possibilidade de condenação a partir de presunções contrárias aos réus”, estaremos dando passos vigorosos em direção ao Estado Penal.
Por quê? Porque essas teses estão em franca oposição ao princípio constitucional da presunção de inocência, e o Supremo deixará de atuar como garantidor dos direitos e garantias fundamentais.
Se, de fato, isso acontecer, essas teses vão ser reproduzidas e acolhidas em outros casos a serem julgados por diversos juízes e tribunas brasileiros. A porta para os decisionismos e as perversões inquisitoriais estará aberta.

Viomundo — Isso significa que as teses aceitas pelo STF na Ação Penal 470 acabarão atingindo os cidadãos comuns?
Rubens Casara — Com certeza. São os ‘clientes’ preferenciais do nosso sistema penal que privilegia os que têm posses e condena os sem condição financeira.

Viomundo – Em função do julgamento, juristas têm usado muito a expressão “atos de ofício”. O que significa exatamente?
Rubens Casara – Atos de ofício do juiz são os produzidos sem a provocação de qualquer das partes. Eles se originam da tradição inquisitorial. No sistema processual inquisitivo, o juiz acusava, produzia as provas e, depois, também julgava a pessoa a quem ele já tinha atribuído a prática de um delito.
E qual é o risco dessa atuação de ofício? O fenômeno que o professor italiano Franco Cordero chama de “primado da hipótese sobre fato”.
O que é esse primado da hipótese sobre o fato? O juiz assume a hipótese da acusação como verdadeira e passa o processo tentando demonstrar que está correto. Essa atuação de ofício traduz uma antecipação de seu julgamento, consubstanciada na aceitação da hipótese a partir da qual orienta a sua busca.
O problema é que, ao partir de uma hipótese falsa, o julgador que adota essa postura inquisitorial, não raro, chega a uma conclusão falsa, mas que ele acredita ser verdadeira, mais precisamente, chega a uma “verdade” que ele construiu, a partir do senso comum ou de distorções, por vezes inconscientes, do próprio conjunto probatório.
Isso compromete a imparcialidade, ou seja, viola a equidistância que o julgador deve manter das versões postas pelas partes. Isso acaba por levar ao que Cordero chamou de “quadro mental paranoico”, já que o juiz decide antes, ao assumir como verdadeira a hipótese da acusação, e, depois, sai em busca de material probatório para “confirmar” essa sua versão.

Viomundo – É um risco da Ação Penal 470?
Rubens Casara – É um risco de todos os processos nos quais o juiz quer assumir o protagonismo probatório. Ele pratica atos de ofício na tentativa de demonstrar a veracidade da hipótese que aceitou como verdadeira. Não comprovar essa versão significa fracassar e ninguém gosta de fracassar.
Há uma discussão muito grande sobre essa questão na doutrina brasileira. Há quem defenda a possibilidade do juiz produzir provas de ofício, mas há excelentes autores que dizem que não, que a gestão da prova deve permanecer com as partes.
A inércia do juiz seria, então, uma garantia de sua imparcialidade.
Eu prefiro essa segunda corrente que defende que o juiz, na medida do possível, deve ficar equidistante das versões das partes. Ele deve receber as provas da acusação e da defesa, para, no final, julgar a partir do conjunto probatório produzido dialeticamente pelas partes.

Viomundo – O ministro Joaquim Barbosa estaria assumindo o protagonismo probatório?
Rubens Casara – Na atuação do ministro Joaquim Barbosa, que vem dos quadros do Ministério Público, órgão constitucionalmente encarregado de formular hipóteses e produzir provas que a confirmem, muitos enxergam essa tendência inquisitorial.
Confesso que não estudei a fundo as decisões desse ministro, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, que será o futuro presidente do Supremo Tribunal Federal.
Para além do que a mídia noticia, não conheço a atuação do Ministro Joaquim Barbosa.
Veja bem. Existem leis infraconstitucionais que autorizam a produção probatória pelo juiz. A questão é saber se essas leis são adequadas ou não à Constituição da República. Uma lei infraconstitucional contrária à Constituição é imprestável e não deve ser aplicada.
O ideal, portanto, é o modelo em que cabe ao juiz julgar, ao acusador formular e provar a acusação e ao defensor a missão de defender o acusado. O ideal é que o juiz não participe da produção probatória. O ato de produzir provas é inerente à atividade de acusar e de defender. Na verdade, um ônus de quem formula a acusação, porque no processo penal brasileiro a carga probatória é toda do acusador. A defesa não precisa provar nada, desde que a acusação fracasse na sua missão de comprovar os fatos que constituem a acusação.
No modelo brasileiro, o ônus da prova – aquele que tem o dever de fazer prova e vai arcar com as conseqüências de não provar – é da acusação. Se o acusador não consegue provar sua hipótese, o réu tem de ser absolvido. É a dimensão probatória do princípio da presunção de inocência, o que se expressa na máxima in dubio pro reo.
Então, o juiz que assume o protagonismo probatório, o juiz-inquisidor, é uma figura historicamente vinculada ao modelo inquisitivo, que não é a opção constitucional feita em 1988 nem a da maioria dos Estados democráticos.

Viomundo – O modelo inquisitorial surgiu quando?
Rubens Casara – Do ponto de vista histórico, ele é posterior ao modelo acusatório que já existia no regime ateniense. O sistema inquisitivo surge no século XIII e se torna hegemônico na Europa continental até o século XVIII, momento em que tem início a sua decadência. Curioso notar que o sistema inquisitivo nasce em uma quadra histórica na qual se busca o fortalecimento do Estado, mas ainda hoje é possível perceber sintomas desse sistema nas mais diversas legislações.

Viomundo – No julgamento do AP 470, tem se falado em inversão do ônus da prova, flexibilização de conceitos jurídicos, condenação a partir de presunções, indícios… Como é que fica a situação, professor?
Rubens Casara — Indício é uma prova indireta. Indícios são fatos efetivamente provados que permitem, por dedução, a certeza acerca de outro fato que se quer provar. No nosso modelo processual, é possível uma condenação com base em indícios, desde que eles sejam capazes de demonstrar cabalmente a ocorrência dos fatos descritos na denúncia. Esse não é o problema.
Por outro lado, os demais fenômenos que você menciona representam sérios riscos a uma concepção minimamente democrática de justiça penal, conforme já mencionei. Da mesma maneira, a possibilidade de uma decisão ad hoc, voltada à satisfação dos meios de comunicação de massa e de maiorias de ocasião forjadas na desinformação, representa um risco ao Estado de Direito.
Por quê? Porque o Poder Judiciário tem como sua principal característica o fato de ser contramajoritário. Ou seja, ao contrário do Legislativo e do Executivo, que dependem da votação popular, o Judiciário tem o dever de julgar contra as maiorias, desde que isso seja necessário para preservar os direitos fundamentais das minorias ou de um único cidadão. Existem limites ao exercício do poder que, mesmo impopulares, devem ser respeitados.
Isso significa que se, para respeitar os direitos fundamentais do Fernandinho Beira-Mar ou do José Dirceu, o magistrado tiver que desagradar toda a opinião pública, ele tem que fazer isso. O Judiciário é, ou deveria ser o garantidor dos direitos fundamentais, dos direitos inerentes à condição humana.
Sempre que o Judiciário cede àquilo que, no início, chamei de “tentação populista”, ele se aproxima da atuação do Executivo e do Legislativo e, portanto, torna-se desnecessário. O Judiciário só se justifica para assegurar a concretização do projeto constitucional e, para tanto, deve, ou deveria, atuar como garantia dos direitos fundamentais de cada indivíduo, criminosos ou não, inclusive aqueles selecionados pela grande mídia para figurar como inimigos públicos da sociedade.

Viomundo – Por exemplo…
Rubens Casara — Vamos imaginar uma sociedade racista. Se o Poder Judiciário não for contramajoritário, as decisões vão ser racistas.
Numa sociedade sexista, se o Poder Judiciário não for contramajoritário, as decisões vão ser sexistas. Numa sociedade homofóbica, as decisões vão ser homofóbicas…
Cabe ao Judiciário impor limites aos desejos e perversões das maiorias.
Acho importante também frisar que os juízes, como todo mundo, estão inseridos em uma tradição que acaba por condicionar suas decisões. O problema no Brasil é que essa tradição é extremamente autoritária. As pessoas recorrem ao sistema de justiça criminal para resolver os mais diversos problemas. Acreditam no uso da força para solucioná-los. Problemas sociais ou políticos, por exemplo, são desqualificados, descontextualizados e redefinidos como se fossem meros casos de polícia a serem resolvidos no sistema de justiça criminal.
A sociedade brasileira é autoritária. A ausência de rupturas históricas talvez explique porque ainda hoje práticas típicas da ditadura, como a relativização de direitos fundamentais, são naturalizadas. E essa natureza autoritária acaba repercutindo em todas as decisões judiciais — da primeira instância à Suprema Corte.

Viomundo – O ônus da prova cabe à acusação…
Rubens Casara – Nos modelos democráticos!!!

Viomundo – A partir do momento em que o Judiciário inverte esse papel, qual o risco para a sociedade?
Rubens Casara — A inversão do ônus da prova em matéria penal é um sintoma nítido da ausência de uma cultura democrática na sociedade brasileira. Em nome de uma maior eficiência dos órgãos encarregados da repressão penal, da busca por um maior número de condenações, direitos e garantias previstas na Constituição da República são negados, e a sociedade brasileira assiste a tudo isso calada porque se acostumou com o autoritarismo.
A naturalização de posturas autoritárias impede a criação de uma cultura verdadeiramente democrática, de respeito aos diretos fundamentais.
Nós, por vezes, aplaudimos atos de autoritarismo. Há quem bata palmas para condenações desassociadas de um suporte probatório robusto e confiável, conforme os meios de comunicação de massa têm noticiado. Há também quem concorde com a inversão do ônus da prova em matéria penal, sem perceber que isso representa um risco à própria ideia de democracia processual.

Viomundo — Por quê?
Rubens Casara — Por que o ônus da prova cabe ao Ministério Público? Porque o Ministério Público é o Estado-Administração, a parte que tem as melhores condições de provar as hipóteses que formula. O acusado é, nessa relação, a parte mais fraca. Por mais poderoso que o acusado seja, do outro lado está o Estado, o Leviatã, com sua estrutura e recursos.
Essa é a dimensão probatória do princípio da presunção da inocência. Se o indivíduo deve ser tratado como se inocente fosse, cabe ao Estado afastar essa presunção, a única admitida, no Estado de Direito, em matéria penal.
O sistema processual penal, como instrumento de tutela da liberdade, permite constatar que ao Estado também não interessa, e não deveria interessar aos seus agentes, a condenação de um possível inocente, mesmo diante do risco da absolvição de um culpado. Ao réu, basta a dúvida, que impõe, por força da Constituição, a absolvição.
Ao adotar o princípio da presunção de inocência e atribuir ao acusador o ônus de provar a materialidade e a autoria dos delitos que o Estado pretende punir, o legislador constituinte faz uma opção política que implica no reconhecimento de que alguns culpados vão acabar absolvidos, mas que isso é melhor do que condenar pessoas que podem ser inocentes.
Diante desse quadro, o processo penal funciona e só se legitima como garantia contra a opressão estatal.
Assim, se o Estado quer punir quem pratica uma ilegalidade, ele tem de demonstrar, de forma cabal, respeitados o devido processo legal e os demais limites éticos e legais, que o acusado praticou um delito.
Não se pode presumir que alguém é culpado, por exemplo, que determinada pessoa é “o chefe da quadrilha”, a não ser que exista prova concreta, segura e suficiente da existência e da autoria do crime narrado na denúncia pelo acusador.
Para alguém ser condenado, o Estado tem de afastar qualquer dúvida razoável. Do contrário, fica-se muito próximo do existia no modelo fascista italiano, no nazista alemão e no da extinta União Soviética. Ninguém pode ser punido pelo que é, por ser antipático ou desagradar aos detentores do poder, mas somente por aquilo que se demonstra que ele fez.

Viomundo – Por que a ideia de atribuir o ônus da prova ao Ministério Público, portanto ao Estado?
Rubens Casara — Para preservar o indivíduo da fúria persecutória do Estado, respeitando-o como sujeito de direitos. Busca-se também evitar que se onere em demasia a parte mais fraca da relação processual.
Sob o prisma processual, somente a acusação é que alega a ocorrência de um delito, atribuindo-o ao réu. A opção do nosso sistema é de que ao réu sempre se atribuirá o benefício da dúvida, devendo a outra parte, o Ministério Público, diante das prerrogativas e poderes que têm, comprovar o que alegou na denúncia.
No Brasil, nós temos uma visão simplista de achar que só quem responde a processo criminal é bandido e que “bandido bom é bandido sem direitos”.
Isso é falso. Tem pessoas com a ficha limpíssima que praticaram uma enorme quantidade de crimes, enquanto outras, que respondem a vários processos, são inocentes e podem acabar condenadas. O sistema penal é seletivo, de todos aqueles que praticam crimes, poucos acabam julgados; e nem todos que são julgados praticaram crimes.
O desafio é garantir os direitos fundamentais a todos que respondam a processos criminais, sejam eles inocentes ou culpados. Isso é que nos faz humanos e qualifica o processo penal como um instrumento racional de garantia dos direitos. O Estado, durante o processo criminal, não pode violar direitos ou garantias do acusado, sob pena de perder a superioridade ética que o distingue dos criminosos.
E se é para desrespeitar os direitos fundamentais, não precisaríamos do processo penal, nem do Judiciário. Bastava prender a pessoa, colocá-la na cadeia, tirando-a do convívio social, sem maiores justificativas. Insisto: o Judiciário existe para garantir os direitos fundamentais de todos.

Viomundo – Diz-se que o Supremo está sendo pressionado até pela mídia no julgamento do mensalão. O que acha?
Rubens Casara – A influência midiática está intimamente ligada ao que chamei, para utilizar um termo cunhado por Garapon, de “tentação populista”. O populismo penal, aliás, toda forma de populismo, incorporado pelos tribunais — eu não estou falando especificamente da Ação Penal 470 — é um risco para a sociedade.
Agora, é um risco esperado. Numa sociedade do espetáculo não é estranho que o Judiciário queira chamar atenção para si e reproduzir o que já acontece em outras esferas, transformando-se num judiciário espetacular. Cada juiz também quer aparecer bem no espetáculo.
Não causa surpresa, portanto, que o Poder Judiciário, do primeiro grau até os tribunais superiores, procure agradar aos meios de comunicação de massa através de decisões, ainda que contrárias à Constituição da República.
Percebe-se que a esquerda tem uma culpa tremenda no atual quadro, porque nunca deu importância ao Judiciário, sempre o considerou como um mero instrumento de opressão e de manutenção das estruturas sociais.
Acontece que no Estado Democrático de Direito o Judiciário é fundamental à garantia dos direitos e à concretização do projeto constitucional.
E o que fez o Partido dos Trabalhadores em relação ao Poder Judiciário? Contribuiu para uma composição conservadora do órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro.
O exemplo do Supremo Tribunal Federal é emblemático: foram indicados para ministros, salvo raras exceções, pessoas conservadoras, sem compromissos com uma visão progressista de Estado, alguns ligados a setores conservadores da Igreja Católica ou a políticos historicamente contrários às lutas do próprio Partido dos Trabalhadores.
Em suma, perdeu a rara oportunidade de promover uma verdadeira revolução democrática no Poder Judiciário brasileiro. Vale registrar, por oportuno, que os movimentos sociais e os setores mais progressistas da sociedade civil sequer foram ouvidos por ocasião das escolhas.
Há um mito de que os juízes devem ser neutros. Isso não existe. Sob o discurso da neutralidade e da técnica, juízes praticam, e sempre praticaram, atos políticos a partir de suas visões de mundo. A extradição de Olga Benário, grávida de Anita Prestes, para os nazistas que a mataram, por exemplo, foi promovida a partir de uma decisão política travestida da melhor técnica processual no Supremo Tribunal Federal. Aliás, há um pouco de Eichmann em todos esses magistrados que se afirmam neutros e meramente técnicos.
Acho que, diante dos últimos acontecimentos, a própria esquerda que está no governo federal acabará se conscientizando da necessidade de se pensar o Poder Judiciário, de se criarem mecanismos de efetivo controle popular e de se promoverem indicações para os tribunais superiores de pessoas comprometidas com o projeto constitucional de vida digna para todos, para além dos projetos pessoais de poder.

FONTE: http://www.viomundo.com.br/politica/casara-teses-do-stf-na-ap-470-tendem-a-espalhar-por-todo-o-judiciario-atingindo-o-cidadao-comum.html


quarta-feira, 26 de setembro de 2012

HC 95.009 STF

Caros Acadêmicos da Turma D38,
segue o acórdão completo do HC 95.009-4/SP, julgado pelo STF em 2008, de Relatoria do ex-Min. EROS GRAU (aliás, saudades de ver decisões assim, MUITO BEM fundamentadas!). Trata-se de uma verdadeira aula sobre sobre boa parte do tema que trabalhamos nesse 1º bimestre, Vejam a ementa e, ao final, a íntegra.
Boa leitura e bons estudos!

Prof. Alexandre

Ementa:

HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. CORRUPÇÃO ATIVA. CONVERSÃO DE HC PREVENTIVO EM LIBERATÓRIO E EXCEÇÃO À SÚMULA 691/STF. PRISÃO TEMPORÁRIA. FUNDAMENTAÇÃO INIDÔNEA DA PRISÃO PREVENTIVA. CONVENIÊNCIA DA INSTRUÇÃO CRIMINAL PARA VIABILIZAR A INSTAURAÇÃO DA AÇÃO PENAL. GARANTIA DA APLICAÇÃO DA LEI PENAL FUNDADA NA SITUAÇÃO ECONÔMICA DO PACIENTE. PRESERVAÇÃO DA ORDEM ECONÔMICA. QUEBRA DA IGUALDADE (ARTIGO 5º, CAPUT E INCISO I DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL). AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO CONCRETA DA PRISÃO PREVENTIVA. PRISÃO CAUTELAR COMO ANTECIPAÇÃO DA PENA. INCONSTITUCIONALIDADE. PRESUNÇÃO DE NÃO CULPABILIDADE (ARTIGO 5º, LVII DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL). CONSTRANGIMENTO ILEGAL. ESTADO DE DIREITO E DIREITO DE DEFESA. COMBATE À CRIMINALIDADE NO ESTADO DE DIREITO. ÉTICA JUDICIAL, NEUTRALIDADE, INDEPENDÊNCIA E IMPARCIALIDADE DO JUIZ. AFRONTA ÀS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS CONSAGRADAS NO ARTIGO 5º, INCISOS XI, XII E XLV DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. DIREITO, DO ACUSADO, DE PERMANECER CALADO (ARTIGO 5º, LXIII DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL).
 
CONVERSÃO DE HABEAS CORPUS PREVENTIVO EM HABEAS CORPUS LIBERATÓRIO. O habeas corpus preventivo diz com o futuro. Respeita ao temor de futura violação do direito de ir e vir. Temor que, no caso, decorrendo do conhecimento de notícia veiculada em jornal de grande circulação, veio a ser concretizado. Justifica-se a conversão do habeas corpus preventivo em liberatório em razão da amplitude do pedido inicial e porque abrange a proteção mediata e imediata do direito de ir e vir.

SÚMULA 691. EXCEÇÃO. DECISÃO FUNDAMENTADA NA NECESSIDADE, NO CASO CONCRETO, DE PRONTA ATUAÇÃO DESTA CORTE. Esta Corte tem abrandado o rigor da Súmula 691/STF nos casos em que (i) seja premente a necessidade de concessão do provimento cautelar e (ii) a negativa de liminar pelo tribunal superior importe na caracterização ou manutenção de situações manifestamente contrárias ao entendimento do Supremo Tribunal Federal.

PRISÃO TEMPORÁRIA REVOGADA POR AUSÊNCIA DE SEUS REQUISITOS E PORQUE CUMPRIDAS AS PROVIDÊNCIAS CAUTELARES DESTINADAS À COLHEITA DE PROVAS. Prisão temporária que não se justifica em razão da ausência dos requisitos da Lei n. 7.960/89 e, ainda, porque no caso foram cumpridas as providências cautelares destinadas à colheita de provas.

PRISÃO PREVENTIVA: Indeferimento, pelo Juiz, sob o fundamento de ausência de conduta, do paciente, necessária ao estabelecimento de nexo de causalidade entre ela e fatos imputados a outros investigados. Reconsideração com fundamento em prova nova consistente na apreensão de papéis apócrifos na residência do paciente. Insuficiência de provas que se reportam a circunstâncias remotas, dissociadas do contexto atual.

FUNDAMENTAÇÃO INIDÔNEA:
I) CONVENIÊNCIA DA INSTRUÇÃO CRIMINAL PARA VIABILIZAR, COM A COLHEITA DE PROVAS, A INSTAURAÇÃO DA AÇÃO PENAL. Tendo o Juiz da causa autorizado a quebra de sigilos telefônicos e determinado a realização de inúmeras buscas e apreensões, com o intuito de viabilizar a eventual instauração da ação penal, torna-se desnecessária a prisão preventiva do paciente por conveniência da instrução penal. Medidas que lograram êxito, cumpriram seu desígnio. Daí que a prisão por esse fundamento somente seria possível se o magistrado tivesse explicitado, justificadamente, o prejuízo decorrente da liberdade do paciente. A não ser assim ter-se-á prisão arbitrária e, por conseqüência, temerária, autêntica antecipação da pena. O propalado “suborno” de autoridade policial, a fim de que esta se abstivesse de investigar determinadas pessoas, à primeira vista se confunde com os elementos constitutivos do tipo descrito no art. 333 do Código Penal (corrupção ativa).
II) GARANTIA DA APLICAÇÃO DA LEI PENAL, FUNDADA NA SITUAÇÃO ECONÔMICA DO PACIENTE. A prisão cautelar, tendo em conta a capacidade econômica do paciente e contatos seus no exterior não encontra ressonância na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, pena de estabelecer-se, mediante quebra da igualdade (artigo 5º, caput e inciso I da Constituição do Brasil) distinção entre ricos e pobres, para o bem e para o mal. Precedentes.
III) GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA, COM ESTEIO EM SUPOSIÇÕES. Mera suposição — vocábulo abundantemente utilizado no decreto prisional — de que o paciente obstruirá as investigações ou continuará delinqüindo não autorizam a medida excepcional de constrição prematura da liberdade de locomoção. Indispensável, também aí, a indicação de elementos concretos que demonstrassem, cabalmente, a necessidade da prisão.
IV) PRESERVAÇÃO DA ORDEM ECONÔMICA. No decreto prisional nada se vê a justificar a prisão cautelar do paciente, que não há de suportar esse gravame por encontrar-se em situação econômica privilegiada. As conquistas das classes subalternas, não se as produz no plano processual penal; outras são as arenas nas quais devem ser imputadas responsabilidades aos que acumulam riquezas.

PRISÃO PREVENTIVA COMO ANTECIPAÇÃO DA PENA. INCONSTITUCIONALIDADE. A prisão preventiva em situações que vigorosamente não a justifiquem equivale a antecipação da pena, sanção a ser no futuro eventualmente imposta, a quem a mereça, mediante sentença transitada em julgado. A afronta ao princípio da presunção de não culpabilidade, contemplado no plano constitucional (artigo 5º, LVII da Constituição do Brasil), é, desde essa perspectiva, evidente. Antes do trânsito em julgado da sentença condenatória a regra é a liberdade; a prisão, a exceção. Aquela cede a esta em casos excepcionais. É necessária a demonstração de situações efetivas que justifiquem o sacrifício da liberdade individual em prol da viabilidade do processo.

ESTADO DE DIREITO E DIREITO DE DEFESA. O Estado de direito viabiliza a preservação das práticas democráticas e, especialmente, o direito de defesa. Direito a, salvo circunstâncias excepcionais, não sermos presos senão após a efetiva comprovação da prática de um crime. Por isso usufruímos a tranqüilidade que advém da segurança de sabermos que se um irmão, amigo ou parente próximo vier a ser acusado de ter cometido algo ilícito, não será arrebatado de nós e submetido a ferros sem antes se valer de todos os meios de defesa em qualquer circunstância à disposição de todos. Tranqüilidade que advém de sabermos que a Constituição do Brasil assegura ao nosso irmão, amigo ou parente próximo a garantia do habeas corpus, por conta da qual qualquer violência que os alcance, venha de onde vier, será coibida.

COMBATE À CRIMINALIDADE NO ESTADO DE DIREITO. O que caracteriza a sociedade moderna, permitindo o aparecimento do Estado moderno, é por um lado a divisão do trabalho; por outro a monopolização da tributação e da violência física. Em nenhuma sociedade na qual a desordem tenha sido superada admite-se que todos cumpram as mesmas funções. O combate à criminalidade é missão típica e privativa da Administração (não do Judiciário), através da polícia, como se lê nos incisos do artigo 144 da Constituição, e do Ministério Público, a quem compete, privativamente, promover a ação penal pública (artigo 129, I).

ÉTICA JUDICIAL, NEUTRALIDADE, INDEPENDÊNCIA E IMPARCIALIDADE DO JUIZ. A neutralidade impõe que o juiz se mantenha em situação exterior ao conflito objeto da lide a ser solucionada. O juiz há de ser estranho ao conflito. A independência é expressão da atitude do juiz em face de influências provenientes do sistema e do governo. Permite-lhe tomar não apenas decisões contrárias a interesses do governo — quando o exijam a Constituição e a lei — mas também impopulares, que a imprensa e a opinião pública não gostariam que fossem adotadas. A imparcialidade é expressão da atitude do juiz em face de influências provenientes das partes nos processos judiciais a ele submetidos. Significa julgar com ausência absoluta de prevenção a favor ou contra alguma das partes. Aqui nos colocamos sob a abrangência do princípio da impessoalidade, que a impõe.

AFRONTA ÀS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS CONSAGRADAS NO ARTIGO 5º, INCISOS XI, XII E XLV DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. De que vale declarar, a Constituição, que “a casa é asilo inviolável do indivíduo” (art. 5º, XI) se moradias são invadidas por policiais munidos de mandados que consubstanciem verdadeiras cartas brancas, mandados com poderes de a tudo devassar, só porque o habitante é suspeito de um crime? Mandados expedidos sem justa causa, isto é sem especificar o que se deve buscar e sem que a decisão que determina sua expedição seja precedida de perquirição quanto à possibilidade de adoção de meio menos gravoso para chegar-se ao mesmo fim. A polícia é autorizada, largamente, a apreender tudo quanto possa vir a consubstanciar prova de qualquer crime, objeto ou não da investigação. Eis aí o que se pode chamar de autêntica “devassa”. Esses mandados ordinariamente autorizam a apreensão de computadores, nos quais fica indelevelmente gravado tudo quanto respeite à intimidade das pessoas e possa vir a ser, quando e se oportuno, no futuro usado contra quem se pretenda atingir. De que vale a Constituição dizer que “é inviolável o sigilo da correspondência” (art. 5º, XII) se ela, mesmo eliminada ou “deletada“, é neles encontrada? E a apreensão de toda a sorte de coisas, o que eventualmente privará a família do acusado da posse de bens que poderiam ser convertidos em recursos financeiros com os quais seriam eventualmente enfrentados os tempos amargos que se seguem a sua prisão. A garantia constitucional da pessoalidade da pena (art. 5º, XLV) para nada vale quando esses excessos tornam-se rotineiros.

DIREITO, DO ACUSADO, DE PERMANECER CALADO (ARTIGO 5º, LXIII DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL). O controle difuso da constitucionalidade da prisão temporária deverá ser desenvolvido perquirindo-se necessidade e indispensabilidade da medida. A primeira indagação a ser feita no curso desse controle há de ser a seguinte: em que e no que o corpo do suspeito é necessário à investigação? Exclua-se desde logo a afirmação de que se prende para ouvir o detido. Pois a Constituição garante a qualquer um o direito de permanecer calado (art. 5º, LXIII), o que faz com que a resposta à inquirição investigatória consubstancie uma faculdade. Ora, não se prende alguém para que exerça uma faculdade. Sendo a privação da liberdade a mais grave das constrições que a alguém se pode impor, é imperioso que o paciente dessa coação tenha a sua disposição alternativa de evitá-la. Se a investigação reclama a oitiva do suspeito, que a tanto se o intime e lhe sejam feitas perguntas, respondendo-as o suspeito se quiser, sem necessidade de prisão.

Ordem concedida.


Íntegra do Acórdão:


Algumas Súmulas (para a Turma D38)

Caros Acadêmicos da Turma D38, 
eis as Súmulas do STF e STJ que comentamos ao longo do bimestre, em razão da matéria para a prova  na próxima 4ª-feira. Pensem sobre elas, fazendo uma interpretação conforme a CF/88 sempre!
Bons estudos!

Prof. Matzenbacher



Súmula 21/STJ: PRONUNCIADO O RÉU, FICA SUPERADA A ALEGAÇÃO DO CONSTRANGIMENTO ILEGAL DA PRISÃO POR EXCESSO DE PRAZO NA INSTRUÇÃO.

Súmula 52/STJ: ENCERRADA A INSTRUÇÃO CRIMINAL, FICA SUPERADA A ALEGAÇÃO DE CONSTRANGIMENTO POR EXCESSO DE PRAZO.

Súmula 64/STJ: NÃO CONSTITUI CONSTRANGIMENTO ILEGAL O EXCESSO DE PRAZO NA INSTRUÇÃO, PROVOCADO PELA DEFESA.

Súmula 243/STJ: O BENEFÍCIO DA SUSPENSÃO DO PROCESSO NÃO É APLICÁVEL EM RELAÇÃO ÀS INFRAÇÕES PENAIS COMETIDAS EM CONCURSO MATERIAL, CONCURSO FORMAL OU CONTINUIDADE DELITIVA, QUANDO A PENA MÍNIMA COMINADA, SEJA PELO SOMATÓRIO, SEJA PELA INCIDÊNCIA DA MAJORANTE ULTRAPASSAR O LIMITE DE UM (01) ANO.

Súmula 145/STF: NÃO HÁ CRIME, QUANDO A PREPARAÇÃO DO FLAGRANTE PELA POLÍCIA TORNA IMPOSSÍVEL A SUA CONSUMAÇÃO.

Súmula 723/STF: NÃO SE ADMITE A SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO POR CRIME CONTINUADO, SE A SOMA DA PENA MÍNIMA DA INFRAÇÃO MAIS GRAVE COM O AUMENTO MÍNIMO DE UM SEXTO FOR SUPERIOR A UM ANO.