terça-feira, 18 de setembro de 2012

Por que meu pai odeia Max e os problemas do artigo 59 do Código Penal (por Gerivaldo Neiva)

Caros,
hoje, o amigo e magistrado bahiano GERIVALDO NEIVA publicou este artigo em seu BLOG! SIMPLESmente, sensacional. Será muito útil para as aulas de dosimetria da pena, baita exemplo!
Vejam só,
abraços,
 
Prof. Matzenbacher
 
O ator Marcelo Novaes, no papel de Max


Por que meu pai odeia Max e os problemas do artigo 59 do Código Penal

A lei, sem o fato, é apenas um texto qualquer.
Gerivaldo Neiva *
Meu pai tem 80 anos, agricultor aposentado e um noveleiro de primeira linha. Sua jornada começa com o “vale a pena ver de novo”, passa pelos dramalhões mexicanos em outro canal, depois as novelas das 6, das 7 e das 8. O único evento televisivo que lhe faz esquecer as novelas é o futebol. Não importa quem está jogando. O importante é apreciar este esporte fantástico.

Pois bem, da última vez que estive no interior da Bahia visitando a família, meu pai me confessou que odeia o Max, da novela das 8, ou das 9? Nem sei mais. Curioso, perguntei-lhe o motivo e ele me respondeu com muita sinceridade: - Olhe, já teve uma novela que este cara assinou uns papéis para autorizar a venda da casa dos pais, desalojando os velhos coitados. Então, a pessoa que não respeita os pais não vale nada. Desde aquela novela que detesto este sujeito.

Evidente que embarquei na onde do meu velho e concordei com ele, passando também a detestar o tal de Max. De fato, um filho que não ama os pais não merece mesmo muito respeito. Depois da brincadeira, tentei lhe explicar que tanto o cara que autorizou a venda da casa dos pais quanto o Max eram apenas personagens e o artista apenas representava o que tinha sido escrito pelo autor da novela. De nada adiantou e meu pai continuou antipatizando o coitado do Max.

Retornando o trabalho, um dos primeiros processos que peguei para decidir envolvia a dosimetria da pena. No pedido de condenação, todas as circunstâncias do artigo 59, do Código Penal, a saber: culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade do agente, motivos, circunstâncias, consequências do crime e comportamento da vítima. Lembrando Alexandre Morais da Rosa (http://alexandremoraisdarosa.blogspot.com.br/2012/08/aplicacao-da-pena.html), penso que tenho como averiguar as circunstâncias em que o crime foi cometido e as consequências para a vítima, mas tenho uma enorme dificuldade para compreender acerca da conduta social, personalidade do agente e os motivos do crime. Além disso, preciso ainda considerar, em um país de enorme desigualdade social como o Brasil, o que significa “circunstâncias do crime” e “consequências” para o criminoso e para a vítima. Em muitos casos, não tenho dúvidas, a condição social do agente e como formou sua personalidade, embora não se enquadrem no standard, ao invés de agravar a pena, serviriam muito bem pena abrandar.

Ora, como posso entender de comportamento social, da personalidade do agente e dos motivos do crime sem uma perspectiva psicanalítica? Como sou apenas Juiz de Direito, formado pela dogmática positivista, evidente que não posso me arvorar, sem o auxílio de outras disciplinas, a fixar uma pena em meras suposições ou preconceitos acerca do que seja o comportamento social ou personalidade do agente. Da mesma forma, sem um estudo psicológico sobre o comportamento da pessoa que comete um crime passional, por exemplo, como posso me arvorar e considerar os motivos desse crime como uma circunstância para agravar a pena?

De outro lado, ao considerar os antecedentes do agente (a reincidência) para agravar sua pena por um novo delito, resgatando um fato pretérito já devidamente punido, não estaria agindo como meu pai em relação ao Max e detestando o autor do crime por conta de seu passado? Isto não seria punir duas vezes pelo mesmo delito?

Ora, o que está em julgamento agora é o papel de Max na novela atual e não o papel que representou em outra novela. Da mesma forma, o que se pune agora é o comportamento (o fato, e não o autor do fato) do acusado diante de um tipo penal e não seus antecedentes.

Por fim, não se pode transformar o texto do artigo 59 do Código Penal em um script de novela, equação matemática ou exercício de preconceitos e suposições. É hora de estudar as circunstâncias apontadas neste artigo, com o auxílio de outras disciplinas, à luz da doutrina e das garantias constitucionais. Enfim, uma coisa é decorar um texto e representá-lo em uma novela (a ficção) e outra coisa, bem diferente, é estudar um artigo da lei para compreendê-lo diante de um fato concreto (a vida real), pois Lei, sem o fato, é apenas um texto qualquer.
* Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a Democracia e do movimento Leap Brasil (Law Enforcement Against Prohibition).
Fonte: BLOG do Gerivaldo (em 18/09/2012)