terça-feira, 4 de setembro de 2012

De repente, assessores se transformaram em procuradores (por André Karam Trindade)

Simplesmente um absurdo. Vejam a "justificativa".
Realmente, enquanto lia, os que primeiro vieram a minha mente foram os (pobres!) estagiários! 


De repente, assessores se transformaram em procuradores

por André Karam Trindade

Gregor Samsa é o famoso protagonista de uma das obras mais conhecidas e estudadas de Franz Kafka: A metamorfose (1915). Como se sabe, o enredo da novela é bastante singelo e gira em torno de um fato inusitado: certa manhã, ao acordar, a personagem se dá conta de que se transformara, durante o sono, em um inseto monstruoso. Embora Kafka nunca tenha esclarecido a espécie do inseto, os indícios sempre levaram a acreditar que fosse um besouro.

Pois bem. Por que estou contando isto? A razão é simples. Não há outra maneira de explicar o que ocorreu, recentemente, na advocacia pública da província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Este foi o único modo através do qual consegui responder a perguntas feitas pelos alunos em sala de aula e que, aqui, neste Diário de Classe, tento reproduzir com mais detalhes.

No mês passado, mais especificamente no dia 19 de julho de 2012, quando acordamos, assessores haviam sido transformados em procuradores do município de Porto Alegre. Parece ficção, mas foi isto mesmo. Assim, como em um passe de mágica. A lei tem este poder fantástico... (e depois dizem ser a literatura que opera no campo da ficção, da imaginação, da fantasia).

Aprovada pela Câmara de Vereadores e sancionada pelo prefeito, a Lei Complementar 701/2012 instituiu a Lei Orgânica da Procuradoria-Geral do Município de Porto Alegre, conforme noticiado pela ConJur. Segundo as autoridades, a lei aprovada veio para modernizar a estrutura jurídica do município e compilar a legislação vigente em apenas um documento legal, seguindo uma tendência nacional de organização das carreiras jurídicas.

Neste contexto, além de disciplinar as matérias tradicionais, a lei ampliou seu efetivo de servidores a fim de atender ao crescimento das demandas. Ocorre que, para isto, houve a conversão de 81 assessores para assuntos jurídicos em procuradores do município (artigos 119 e 120 da Lei). Desde então, com a ampliação de seu quadro, a PGM contabiliza 150 procuradores do município.

Tal metamorfose — que contou com o entusiasmado apoio da OAB-RS — veio proposta pelo Poder Executivo, conforme expresso quando do encaminhamento do Projeto de Lei Complementar à Câmara de Vereadores: “A transformação dos cargos efetivos da carreira de Assessor para Assuntos Jurídicos e Procurador, ambos providos mediante concurso público, em Procurador Municipal tem fundamento no inc. X do art. 48 da CRFB e segue tendência nacional de estruturação e organização das carreiras jurídicas [...] Historicamente, no Município de Porto Alegre, as atividades e atribuições dos Procuradores e Assessores para Assuntos Jurídicos não são apenas semelhantes, mas se confundem em grau variado tanto na consultoria jurídica quanto na representação judicial, sendo portanto fundamental a reorganização das carreiras.”

Na mesma linha, em seu parecer, a Comissão de Constituição e Justiça refere que a unificação dos cargos observou os requisitos constitucionais, invocando um precedente diverso (AGU). E vai além: justifica a conversão operada sob o argumento de que “tanto os assessores quanto os procuradores exercem as mesmas atividades e possuem a mesma remuneração”.

Ora, convenhamos... em pleno ano de 2012?

E, para que não restem dúvidas acerca da inconstitucionalidade desta transformação de assessores jurídicos em procuradores do município de Porto Alegre, trago as principais distinções expressas nos editais dos últimos concursos públicos para o provimento dos respectivos cargos:

(a) Procurador do Município: o concurso era dividido em três fases e previa prova objetiva, contendo 100 questões; prova dissertativa e prova prática, envolvendo Direito Civil, Direito Urbanístico, Direito Ambiental, Direito Processual Civil, Direito Tributário, Direito Constitucional, Direito Administrativo e Direito Municipal; além de prova de títulos.

(b) Assessor para Assuntos Jurídicos: o concurso era dividido em duas fases e previa prova objetiva, contendo 80 questões, das quais ¼ eram de língua portuguesa; e prova dissertativa, consistente na elaboração de um parecer envolvendo apenas Direito Administrativo, Direito Constitucional e Direito Municipal.

Dispensam-se maiores comentários acerca das diferenças relativas às atribuições de cada um dos cargos. Todos sabem que os assessores, por mais qualificados que eles sejam — e conheço alguns desses, nas mais diversas carreiras —, não representam (extra-)judicialmente suas instituições. Não têm capacidade postulatória, não fazem audiência, não celebram acordos, etc. Isto porque, desde quando o mundo é mundo, “quem-assina” tem responsabilidade diversa de “quem-não-assina”. Simples, pois.

Todavia, se não houve, aqui, flagrante violação ao artigo 37, inciso II, da Constituição (e, sobre a matéria, remeto o leitor, diretamente, à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: Súmula 685, ADI 266, 1.731, 3.819 e 3.857, MS 26.294, RE 583.936-AgR), a dúvida que resta é saber qual será o próximo passo?

Seguindo a lógica adotada na referida Lei Orgânica, pergunto: por que continuar a promover concursos públicos se poderíamos simplesmente transformar os assessores, analistas e assistentes que já integram o quadro de servidores do Estado em juízes, promotores, defensores, delegados, etc.?

E o que diríamos aos estagiários? Por que estes não poderiam reivindicar sua conversão em assistentes, técnicos, assessores e, posteriormente, sua transformação em promotores, defensores, delegados, etc.?

O mesmo se aplica, ainda, a todos os sapos, que esperam, no final, transformarem-se em príncipes e, assim, viverem felizes para sempre ao lado de sua amada. A única diferença é que, neste caso, assumimos estar no reino da fantasia. Aliás, é por isto que, nos últimos cinco anos, também venho me dedicando ao estudo do Direito e Literatura.

André Karam Trindade é doutor em Teoria e Filosofia do Direito (Roma Tre/Itália), mestre em Direito Público (Unisinos) e professor universitário.

Fonte: Revista Consultor Jurídico, 1º de setembro de 2012 (www.conjur.com.br)