segue o acórdão completo do HC 95.009-4/SP, julgado pelo STF em 2008, de Relatoria do ex-Min. EROS GRAU (aliás, saudades de ver decisões assim, MUITO BEM fundamentadas!). Trata-se de uma verdadeira aula sobre sobre boa parte do tema que trabalhamos nesse 1º bimestre, Vejam a ementa e, ao final, a íntegra.
Boa leitura e bons estudos!
Prof. Alexandre
Ementa:
HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL
E PROCESSUAL PENAL. CORRUPÇÃO ATIVA. CONVERSÃO DE HC PREVENTIVO EM
LIBERATÓRIO E EXCEÇÃO À SÚMULA 691/STF. PRISÃO TEMPORÁRIA. FUNDAMENTAÇÃO
INIDÔNEA DA PRISÃO PREVENTIVA. CONVENIÊNCIA DA INSTRUÇÃO CRIMINAL PARA
VIABILIZAR A INSTAURAÇÃO DA AÇÃO PENAL. GARANTIA DA APLICAÇÃO DA LEI
PENAL FUNDADA NA SITUAÇÃO ECONÔMICA DO PACIENTE. PRESERVAÇÃO DA ORDEM
ECONÔMICA. QUEBRA DA IGUALDADE (ARTIGO 5º, CAPUT E INCISO I DA
CONSTITUIÇÃO DO BRASIL). AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO CONCRETA DA PRISÃO
PREVENTIVA. PRISÃO CAUTELAR COMO ANTECIPAÇÃO DA PENA.
INCONSTITUCIONALIDADE. PRESUNÇÃO DE NÃO CULPABILIDADE (ARTIGO 5º, LVII
DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL). CONSTRANGIMENTO ILEGAL. ESTADO DE DIREITO E
DIREITO DE DEFESA. COMBATE À CRIMINALIDADE NO ESTADO DE DIREITO. ÉTICA
JUDICIAL, NEUTRALIDADE, INDEPENDÊNCIA E IMPARCIALIDADE DO JUIZ. AFRONTA
ÀS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS CONSAGRADAS NO ARTIGO 5º, INCISOS XI, XII E
XLV DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. DIREITO, DO ACUSADO, DE PERMANECER
CALADO (ARTIGO 5º, LXIII DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL).
CONVERSÃO DE HABEAS CORPUS PREVENTIVO EM HABEAS CORPUS LIBERATÓRIO. O habeas corpus preventivo
diz com o futuro. Respeita ao temor de futura violação do direito de ir
e vir. Temor que, no caso, decorrendo do conhecimento de notícia
veiculada em jornal de grande circulação, veio a ser concretizado.
Justifica-se a conversão do habeas corpus preventivo em
liberatório em razão da amplitude do pedido inicial e porque abrange a
proteção mediata e imediata do direito de ir e vir.
SÚMULA 691. EXCEÇÃO. DECISÃO FUNDAMENTADA NA NECESSIDADE, NO CASO CONCRETO, DE PRONTA ATUAÇÃO DESTA CORTE. Esta
Corte tem abrandado o rigor da Súmula 691/STF nos casos em que (i) seja
premente a necessidade de concessão do provimento cautelar e (ii) a
negativa de liminar pelo tribunal superior importe na caracterização ou
manutenção de situações manifestamente contrárias ao entendimento do
Supremo Tribunal Federal.
PRISÃO TEMPORÁRIA REVOGADA POR
AUSÊNCIA DE SEUS REQUISITOS E PORQUE CUMPRIDAS AS PROVIDÊNCIAS
CAUTELARES DESTINADAS À COLHEITA DE PROVAS. Prisão temporária
que não se justifica em razão da ausência dos requisitos da Lei n.
7.960/89 e, ainda, porque no caso foram cumpridas as providências
cautelares destinadas à colheita de provas.
PRISÃO PREVENTIVA: Indeferimento,
pelo Juiz, sob o fundamento de ausência de conduta, do paciente,
necessária ao estabelecimento de nexo de causalidade entre ela e fatos
imputados a outros investigados. Reconsideração com fundamento em prova
nova consistente na apreensão de papéis apócrifos na residência do
paciente. Insuficiência de provas que se reportam a circunstâncias
remotas, dissociadas do contexto atual.
FUNDAMENTAÇÃO INIDÔNEA:
I) CONVENIÊNCIA DA INSTRUÇÃO CRIMINAL PARA VIABILIZAR, COM A COLHEITA DE PROVAS, A INSTAURAÇÃO DA AÇÃO PENAL. Tendo
o Juiz da causa autorizado a quebra de sigilos telefônicos e
determinado a realização de inúmeras buscas e apreensões, com o intuito
de viabilizar a eventual instauração da ação penal, torna-se
desnecessária a prisão preventiva do paciente por conveniência da
instrução penal. Medidas que lograram êxito, cumpriram seu desígnio. Daí
que a prisão por esse fundamento somente seria possível se o magistrado
tivesse explicitado, justificadamente, o prejuízo decorrente da
liberdade do paciente. A não ser assim ter-se-á prisão arbitrária e, por
conseqüência, temerária, autêntica antecipação da pena. O propalado
“suborno” de autoridade policial, a fim de que esta se abstivesse de
investigar determinadas pessoas, à primeira vista se confunde com os
elementos constitutivos do tipo descrito no art. 333 do Código Penal
(corrupção ativa).
II) GARANTIA DA APLICAÇÃO DA LEI PENAL, FUNDADA NA SITUAÇÃO ECONÔMICA DO PACIENTE. A
prisão cautelar, tendo em conta a capacidade econômica do paciente e
contatos seus no exterior não encontra ressonância na jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal, pena de estabelecer-se, mediante quebra da
igualdade (artigo 5º, caput e inciso I da Constituição do Brasil) distinção entre ricos e pobres, para o bem e para o mal. Precedentes.
III) GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA, COM ESTEIO EM SUPOSIÇÕES. Mera
suposição — vocábulo abundantemente utilizado no decreto prisional — de
que o paciente obstruirá as investigações ou continuará delinqüindo não
autorizam a medida excepcional de constrição prematura da liberdade de
locomoção. Indispensável, também aí, a indicação de elementos concretos
que demonstrassem, cabalmente, a necessidade da prisão.
IV) PRESERVAÇÃO DA ORDEM ECONÔMICA. No
decreto prisional nada se vê a justificar a prisão cautelar do
paciente, que não há de suportar esse gravame por encontrar-se em
situação econômica privilegiada. As conquistas das classes subalternas,
não se as produz no plano processual penal; outras são as arenas nas
quais devem ser imputadas responsabilidades aos que acumulam riquezas.
PRISÃO PREVENTIVA COMO ANTECIPAÇÃO DA PENA. INCONSTITUCIONALIDADE. A prisão preventiva em situações que vigorosamente não a justifiquem equivale a antecipação da pena,
sanção a ser no futuro eventualmente imposta, a quem a mereça, mediante
sentença transitada em julgado. A afronta ao princípio da presunção de
não culpabilidade, contemplado no plano constitucional (artigo 5º, LVII
da Constituição do Brasil), é, desde essa perspectiva, evidente. Antes
do trânsito em julgado da sentença condenatória a regra é a liberdade; a
prisão, a exceção. Aquela cede a esta em casos excepcionais. É
necessária a demonstração de situações efetivas que justifiquem o
sacrifício da liberdade individual em prol da viabilidade do processo.
ESTADO DE DIREITO E DIREITO DE DEFESA. O Estado de direito viabiliza
a preservação das práticas democráticas e, especialmente, o direito de
defesa. Direito a, salvo circunstâncias excepcionais, não sermos presos
senão após a efetiva comprovação da prática de um crime. Por isso
usufruímos a tranqüilidade que advém da segurança de sabermos que se um
irmão, amigo ou parente próximo vier a ser acusado de ter cometido algo
ilícito, não será arrebatado de nós e submetido a ferros sem antes se
valer de todos os meios de defesa em qualquer circunstância à disposição
de todos. Tranqüilidade que advém de sabermos que a Constituição do
Brasil assegura ao nosso irmão, amigo ou parente próximo a garantia do habeas corpus, por conta da qual qualquer violência que os alcance, venha de onde vier, será coibida.
COMBATE À CRIMINALIDADE NO ESTADO DE DIREITO. O
que caracteriza a sociedade moderna, permitindo o aparecimento do
Estado moderno, é por um lado a divisão do trabalho; por outro a
monopolização da tributação e da violência física. Em nenhuma sociedade
na qual a desordem tenha sido superada admite-se que todos cumpram as
mesmas funções. O combate à criminalidade é missão típica e privativa da
Administração (não do Judiciário), através da polícia, como se lê nos
incisos do artigo 144 da Constituição, e do Ministério Público, a quem
compete, privativamente, promover a ação penal pública (artigo 129, I).
ÉTICA JUDICIAL, NEUTRALIDADE, INDEPENDÊNCIA E IMPARCIALIDADE DO JUIZ. A neutralidade impõe
que o juiz se mantenha em situação exterior ao conflito objeto da lide a
ser solucionada. O juiz há de ser estranho ao conflito. A independência é
expressão da atitude do juiz em face de influências provenientes do
sistema e do governo. Permite-lhe tomar não apenas decisões contrárias a
interesses do governo — quando o exijam a Constituição e a lei — mas
também impopulares, que a imprensa e a opinião pública não gostariam que
fossem adotadas. A imparcialidade é expressão da atitude do
juiz em face de influências provenientes das partes nos processos
judiciais a ele submetidos. Significa julgar com ausência absoluta de
prevenção a favor ou contra alguma das partes. Aqui nos colocamos sob a
abrangência do princípio da impessoalidade, que a impõe.
AFRONTA ÀS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS CONSAGRADAS NO ARTIGO 5º, INCISOS XI, XII E XLV DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. De
que vale declarar, a Constituição, que “a casa é asilo inviolável do
indivíduo” (art. 5º, XI) se moradias são invadidas por policiais munidos
de mandados que consubstanciem verdadeiras cartas brancas, mandados com
poderes de a tudo devassar, só porque o habitante é suspeito de um
crime? Mandados expedidos sem justa causa, isto é sem especificar o que se
deve buscar e sem que a decisão que determina sua expedição seja
precedida de perquirição quanto à possibilidade de adoção de meio menos
gravoso para chegar-se ao mesmo fim. A polícia é autorizada, largamente,
a apreender tudo quanto possa vir a consubstanciar prova de qualquer
crime, objeto ou não da investigação. Eis aí o que se pode chamar de
autêntica “devassa”. Esses mandados ordinariamente autorizam a apreensão
de computadores, nos quais fica indelevelmente gravado tudo quanto
respeite à intimidade das pessoas e possa vir a ser, quando e se
oportuno, no futuro usado contra quem se pretenda atingir. De que vale a
Constituição dizer que “é inviolável o sigilo da correspondência” (art.
5º, XII) se ela, mesmo eliminada ou “deletada“, é neles
encontrada? E a apreensão de toda a sorte de coisas, o que eventualmente
privará a família do acusado da posse de bens que poderiam ser
convertidos em recursos financeiros com os quais seriam eventualmente
enfrentados os tempos amargos que se seguem a sua prisão. A garantia
constitucional da pessoalidade da pena (art. 5º, XLV) para nada vale
quando esses excessos tornam-se rotineiros.
DIREITO, DO ACUSADO, DE PERMANECER CALADO (ARTIGO 5º, LXIII DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL). O
controle difuso da constitucionalidade da prisão temporária deverá ser
desenvolvido perquirindo-se necessidade e indispensabilidade da medida. A
primeira indagação a ser feita no curso desse controle há de ser a
seguinte: em que e no que o corpo do suspeito é necessário à
investigação? Exclua-se desde logo a afirmação de que se prende para
ouvir o detido. Pois a Constituição garante a qualquer um o direito de
permanecer calado (art. 5º, LXIII), o que faz com que a resposta à
inquirição investigatória consubstancie uma faculdade. Ora, não
se prende alguém para que exerça uma faculdade. Sendo a privação da
liberdade a mais grave das constrições que a alguém se pode impor, é
imperioso que o paciente dessa coação tenha a sua disposição alternativa
de evitá-la. Se a investigação reclama a oitiva do suspeito, que a
tanto se o intime e lhe sejam feitas perguntas, respondendo-as o
suspeito se quiser, sem necessidade de prisão.
Ordem concedida.
Íntegra do Acórdão: