terça-feira, 2 de abril de 2013

A tragédia em Santa Maria, as prisões e a denúncia, e a (velha) hipocrisia (de sempre).



Tristeza e revolta.

Dor e sofrimento.

Não tenho palavras para expressar o vazio e os sentimentos nos corações dos familiares e amigos das vítimas da tragédia ocorrida na boate Kiss em Santa Maria - RS. A solidariedade diante da situação foi universal. Comungo desses sentimentos, sou tocado por esses atos, e vejo que ainda há humanidade nos corações, por isso, a esperança deve ser perene.

Mas nesse momento, é outra reflexão que proponho e preciso desabafar. Falar sobre prisão e hipocrisia, sobre a banalização daquela e o pacto dessa. Falar sobre Narciso e justiça, sobre a imagem e o ego enaltecidos daqueles, e a busca incansável dessa.

ATENÇÃO: a reflexão é sobre os desdobramentos da tragédia, e não sobre a tragédia em si.

Pare para pensar um pouco. O que você pensava, há poucos meses atrás, sobre saídas de emergência, extintores de incêndio, brigadas de incêndio, portas corta-fogo, sensores de fumaça, mangueiras de incêndio, escadas de incêndio, alarmes de incêndio, planos de incêndio, planos de pânico?

Acontecida a tragédia, se faça a mesma pergunta... E aí, algum pensamento diferente? Quantas vezes você já não entrou numa boate ou num barzinho? Já não assistiu um show num ambiente fechado? Já não viu uma grade na janela do banheiro para evitar que os caloteiros fugissem por ali? Contou quantas saídas de emergência tinham esses lugares? Calculou a distância de sua mesa até a saída? Verificou o material do isolamento acústico? Conferiu a validade dos extintores de incêndio mais próximos? Se dispôs a conhecer o plano de incêndio e o plano de pânico (parem para pensar no nome dos planos: de incêndio e de pânico. O primeiro não seria para pensar em como incendiar o lugar? O segundo não seria como deixar todo mundo em pânico? Pois é, o poder das palavras...)?

Ah pois é... Quantas casas noturnas foram vistoriadas nesses últimos meses de norte a sul do Brasil? Quantos funcionários públicos, quantos bombeiros foram mobilizados para fazer isso nesse período? Quantos processos de liberação e renovação de alvarás não tramitaram nesses últimos tempos? Quantos processos administrativos foram agilizados? Quando que na agenda dos Prefeitos recém eleitos estaria agendada uma reunião com os empresários das casas noturnas das cidades para aparecer, quer dizer, discutir sobre como evitar uma tragédia dessas?

São questionamentos que não devem passar batido. Que geram uma reflexão mais apurada sobre o princípio reinante nas relações (lato sensu): o da hipocrisia.

Quando ainda estava em Porto Velho – RO, na terça-feira logo após a tragédia, escutava na rádio Parecis FM, um programa de grande audiência, onde os interlocutores comentavam sobre tal. E durante um tempo o senso comum era de que a lei deveria mudar, que a lei era muito branda. Questiono: muito branda pra quem? Muito branda pra quê? Faziam pouco mais de 2 madrugadas que tinha ocorrido o evento em Santa Maria e já queriam (todos) prender e deixar apodrecendo no cárcere os primeiros que aparecessem nos noticiários. Notem que essas generalizações nada dizem, mas alienam e confundem a patuléia (LENIO), mantendo as coisas (e os pensamentos) em seu devido lugar (qual lugar? Definido por quem?). Passados dois dias, naquela quinta-feira, no mesmo programa, os mesmos interlocutores falaram que não era preciso mudar a legislação, que o problema era a falta de fiscalização. E nesse ponto concordei com o “senso” firmado, mas o que me irrita é a hipocrisia. É a massa sendo manobrada.

E isso porque há um pacto de hipocrisia quando se fala em fiscalização. A velhaca “Lei de Gerson” está vigente em cada esquina desse rincão chamado Brasil, infelizmente. As vantagens das leis, queremos-as todas, brigamos por elas, reclamamos no PROCON, denunciamos no MP, levamos ao conhecimento da Autoridade Policial, ingressamos com medidas (in)cabíveis junto ao Poder Judiciário para assegurar tudo aquilo que nos beneficia. Mas as desvantagens das leis, queremos-as bem longe daqui. Não queremos que desvendem nossos pecados, que descubram nossos segredos, que saibam o que fazemos quando ninguém está olhando. Para evitar a aplicação da lei, quando negativa para nós e positiva para alguém, por exemplo, maquiamos aqui, burlamos ali, escondemos acolá, visando a vantagem ou a manutenção dela, evitando a sanção e claro, sacar do bolso o “dízimo” para pagar a(s) multa(s). Queremos que alguns processos (administrativos, judiciais, particulares) tenham passos de tartaruga e outros pulos de lebre. Somos egoístas e nos preocupamos com o nosso senso de justiça, e a generalização aqui é proposital e real – lembrem-se que a verdade dói.

Não podemos olvidar que só há corruptos porque há corruptores, assim como só há corruptores porque há corrompíveis. A hipocrisia é tanta que chega a dar nojo. Nesses últimos meses, foi possível captar inúmeras notícias de que não sei quantos estabelecimentos noturnos (bares e boates) foram fechados desde a tragédia na boate Kiss por não cumprirem algumas determinações legais, principalmente quanto a alvarás de funcionamento e questões relacionadas a evitar incêndios. Bombeiros e Prefeituras fiscalizando. Ou melhor, monstrando trabalho para (re)afirmar que esses serviços públicos são prestados, que o Estado funciona, que se fiscaliza, que se pune aqueles que não cumprem a legislação, para saírem bem nas fotos nas capas de jornais e em reportagens jornalísticas. Balela. Fogo de palha. Seleção: seja voluntária, seja involuntária. Vejamos a (mal)dita “Lei Seca”. Quando entrou em vigor, gerou aquele alvoroço, aumentando a demanda por fiscalização objetivando provar (para quem? Ah sim, para os alienados) que a lei funciona, que a aplicação é igual para todos, que aqueles que as descumprem são definitivamente punidos. Mas, com o passar do tempo, é como se a lei fosse esfriando, perdendo a densidade política e social. E essa “perda” na verdade é facilmente encaixada como falta de fiscalização. Fiscalizar é caro [e dá problema para o(s) conhecido do(s) rei(s)]. Fazer leis é mais barato (e isso que no Congresso Nacional temos “só” 594 legisladores!). E se der “problema” (alguma desvantagem surgir em razão dela), o Poder Judiciário estará ali para amparar, ou não, mas o fato é que se brigará para assegurar a vantagem ou não aceitar a desvantagem assim tão facilmente. Fiscalização é coisa séria. Agora publicou-se a “Lei Seca – Parte II”, trazendo legítima “tolerância zero” na equação “álcool x direção”. E é lógico, inicialmente, a fiscalização será efetiva, para reafirmar a força da lei, a seriedade da punição e a alienação dos caras pálidas que ficam sentados em frente a televisão vendo o Sir Bonner ditar o Direito.

Empresários do ramo de combate a incêndios falaram em reportagens que a prestação desses serviços e venda de produtos dessa natureza aumentarem entre 40 a 50% nos últimos tempos. O ciclo se repete. Vejamos os “Diálogos com a Law & Economics” (ALEXANDRE MORAIS DA ROSA)!

Dando o benefício da dúvida, o fato é que ou os órgãos de fiscalização ou cumpriram seu papel ou não cumpriram suas obrigações legais, seja por desídia, seja por alguma espécie de corrupção. E a tragédia em Santa Maria é o resultado disso. De um lado, em Porto Alegre, o Capitão do Corpo de Bombeiros disse em entrevista que a casa noturna estava “ok” com a documentação, confirmando ainda um pedido voluntário da própria boate para nova vistoria, a qual não foi realizada pela burocracia do processo  fiscalizatório. Por outro lado, o Corpo de Bombeiros de Santa Maria disse que a situação não é bem assim. Enfim, o fato é que há falhas e ponto. Não há e não haverá um único responsável pelo evento culposo, mas responsáveis. Responsabilidades. Corresponsabilidades. Mas admitir não é fácil.

E aqui chego no segundo desabafo: a banalização da prisão. E hoje limitar-me-ei a falar sobre a prisão dos integrantes do conjunto musical e dos proprietários da tal casa noturna. Lembro que ao todo, 4 pessoas ainda estão presas.

Não tenho dúvidas de que as prisões são ilegais. Claramente se trata de delito culposo. Vamos acordar, vamos pensar. A Teoria Geral do Delito está aí. Crimes dolosos são completamente distintos dos crimes culposos. Os denunciados hoje, queriam o resultado? Admitiam o resultado? Forçaram demais  a barra colocando homicídio doloso para representar pelas prisões, para deferir as prisões, para indiciar, e hoje, para denunciar quatro pessoas pelo crime máximo contra a vida na modalidade dolosa.

Apenas para não passar em branco, não se olvidem que quando a polícia pediu a prorrogação da prisão temporária (inicialmente de 05 dias), levou em consideração a Lei dos Crimes Hediondos, que possibilita a privação da liberdade por até 30 dias (prorrogáveis) e não “apenas” 05 (também prorrogáveis). Ou seja, o que estamos vendo aí, e ainda veremos, é muita teoria da imputação objetiva e JAKOBS sendo usado por aí sem a devida citação da fonte.

Como diria PONDÉ, a praga contemporânea é o "politicamente correto". E no Sistema (de Justiça?) Criminal a manipulação discursiva, usada pelos órgãos de persecução penal, assegura ao Judiciário a “tranquilidade” para enjaular pessoas buscando dar uma resposta à sociedade diante da tragédia e do sentimento geral de revolta. Afinal de contas, como a boate estava funcionando diante de tantas falhas em projetos (arquitetônicos, acústicos, prevenção de incêndios)?

Mas usar, expressamente, esse fundamento para a decretação da prisão provisória dessas pessoas seria como admitir que se está burlando. Então, tudo fica muito simples com o jogo de palavras usadas pelo "monastério dos sábios" (WARAT) para justificar o injustificável, tornando possível o impossível, fazer da falta de verdade a verdade. O ponto zero (LENIO). Decisionismo total. Mas assim age-se politicamente correto. Bingo! Grita a patuleia. E os novos heróis estão postos. A sensação é uma espécie de conforto com os outros atrás das grades.

Como se já não bastasse todo o apelo midiático e a cobertura sensacionalista da tragédia, encontramos vários Narcisos loucos por se admirarem perante as câmaras de TV (há reprises, vídeos no youtube e nos canais das emissoras), esbanjando imagens de força e orgulho. E nesse ínterim, hoje à tarde, na ideologia de que "eles fazem justiça todos os dias, nos Tribunais, nos órgãos públicos e nas ruas” (veja aqui o vídeo institucional da Pós-graduação da Fundação Escola Superior do Ministério Público do RS http://www.youtube.com/watch?v=lzYL5jMCGY8), alguns representantes do MP gaúcho convocaram a imprensa para denunciar os responsáveis pela tragédia [confesso que ainda fico pensando no sentido da palavra tragédia, e na relação (im)possível entre tragédia e crime]. Resultado: auditório cheio e denúncia recebida. Como? Sim, é isso mesmo alunos de Direito Processual Penal, a denúncia foi recebida: pela mídia. Vivemos na sociedade do espetáculo. Quatro pessoas denunciadas por homicídio qualificado, duas denunciadas por falso testemunho, duas denunciadas por fraude processual, arquivamento em relação a três indiciados pela Polícia, requerimento de novas diligências em relação a quatro pessoas e os dois bombeiros vistoriadores devem responder por homicídio culposo, e não doloso, e sim alunos de Direito Penal, como pode o crime de homicídio, de conduta usa, ser divisível? Com uma “nova” teoria do delito desenvolvida pela Polícia Civil e pelo MP (são as novas fontes do direito). A mídia já recebeu a denúncia, o juiz apenas a ratificará, e o rito do Tribunal do Júri terá seu início formal, pois o resultado, já é previsível. Afinal de contas, alguém tem que pagar. 

Vale lembrar que o processo penal é instrumento de garantia daquele que se senta no banco dos réus (AURY), e só depois dele, respeitando todas as regras do jogo que o institui, é que pode vir a aplicação de uma punição (princípio da necessidade - GÓMEZ ORBANEJA). Mas não. Inversão da ordem. Jogo defeituoso, diante da banalização da prisão provisória e da maculação do viés externo da garantia da presunção de inocência.

Os quatro presos, dois sócios-proprietários da boate Kiss, o vocalista e o produtor da banda Gurizada Fandangueira, permanecerão presos, ao que tudo indica, para manutenção do politicamente correto, mesmo que as regras do jogo sejam assim relativizadas (lembrem-se que estamos “brincando” com a liberdade – direito fundamental). Se a justificativa for para a “manutenção para evitar que se evadam do distrito da culpa” e “possibilidade de corromper testemunhas”, fala corriqueira da Autoridade Policial corroborada pelo MP, onde estão os indícios que fundamentam tal pensar? Porque possuem dinheiro? Então que se bloqueiem os bens (tal como já feito, mas como cautelar cível, salvo engano), que se coloque em prática a Lei 12.403/2011 e sejam decretadas medidas cautelares alternativas, pois cabíveis. Mas não. Temos que atiçar o fogo das tradições medievas, dando voz ao velho maniqueísmo para varrer para debaixo do tapete a omissão estatal e fazer com que os presos sofram o escárnio público, sintam as grades, o cheiro e o chão da cela, que sejam humilhados, escrachados publicamente, para que não reste dúvidas de quem são os “responsáveis”. Marca de ferro e fogo gravada no inconsciente coletivo. A mídia se encarrega dessa tarefa. E se vierem com aquela “preservação da integridade física dos presos”, como já vieram, como fundamento para manter a prisão, por favor né tchê (indignação é o mínimo). Ou seja, o Estado que tem a obrigação de garantir a segurança pública (logo, de todos), assina (mais um) atestado de incompetência para não assegurar nossa segurança (e principalmente daquele quatro). Mas nós não nos indignamos com isso, até porque, só sentimos a (in)efetividade da segurança pública quando precisamos dela. Mas, como é com os outros...

Pois é, a justiça é um sentimento subjetivo. Sim, nem sempre ela estará onde está o Direito, e nem sempre o Direito estará onde ela está. É, aquilo que aprendeu em Introdução à Ciência do Direito, com a famosa frase de Couture "Teu dever é lutar pelo Direito, mas se um dia encontrares o Direito em conflito com a Justiça, luta pela Justiça", é muito bonito, retoricamente, pois dependerá do lado em que estiveres meu amigo. Ela [a justiça] está aí para ser plantada. O que é justiça para mim, pode não ser para ti, nem para nenhum de vocês. Devemos buscar o Direito pelo próprio Direito para assegurar o convívio social. E com isso, devemos evitar a dissimulação da lógica processual penal, tão penosa na hermenêutica constitucional e no carrossel democrático. Devemos estabelecer a manutenção do pensar, em detrimento do status quo de não-pensar, ou melhor, a reprodução da incapacidade de avançar, e repetir o que disseram aqueles (e outros) radialistas.

Como diria o CLARICE: “se não acontece, não acontece, mas se acontece...”.

Por isso, vamos pensar um pouco e romper com esse pacto hipócrita (ainda que não-pensado) existente nas escolas, nas faculdades, nas universidades, nas empresas, na administrações públicas, nas relações interpessoais. Para que, quando formos vítimas ou vitimizados (e um dia seremos!), possamos fazer com que a nossa “justiça” seja colhida pelos outros.

Mas tenho esperanças. Não sou tão pessimista quanto KAFKA ou o PAULINHO.


PS: JADER MARQUES, tu és fera, já estás e farás um grandioso trabalho. Que se alguns devem pagar pelos erros dos outros, que esses pagadores sejam devidamente defendidos, com unas e dentes, contra a seleção nada natural desses selecionados.