terça-feira, 1 de novembro de 2011

terra mãe por Denival

Caros, 
conforme solicitado pelo Denival Silva (juiz de direito, professor e amigo) na palestra da última sexta-feira,  venho disponibilizar o poema "Terra Mãe", bem como parabenizá-los (ele e o Alexandre Bizzotto) pelo brilhantismo com que conduziram as falas, pela complexidade crítica e pela postura reflexiva junto ao nosso corpo discente, o qual teve a oportunidade de ver, ouvir e sentir as mazelas da dogmática penal (tanto material quanto processual). Assim, segue o poema de autoria do Denival Silva, publicado na obra "Poemas  iniciais em forma de contestação", em homenagem aos mortos do massacre de Corumbiara, ocorrido aqui em nosso estado no ano de 1995.
Boa leitura. Pensem, reflitam, e depois critiquem!
Abraços e bom feriado,

Prof. Matzenbacher


MOTE
Constituição Federal: art. 5, XXIII
"A propriedade atenderá sua função social"

TERRA MÃE
(Aos mortos no massacre em Corumbiara/RO)

Lutei por ti e vi tuas entranhas,
cuja cor resplandece dos umbrais dos deuses
- magnânimo crepúsculo do entardecer,
infusível, radiante e inimaginável -
a mover-me no divã nas auroras
sonhadas num nascente primaveril.

De ti germinou a semente
que fez gente sobre gente,
mentes desvairadas,
aflitas, atordoadas.

Tu és a (in)genitora do assomo,
dos conflitos, dos gritos perdidos
na mata virgem e desnudada,
feito animal valente desgarrado,
corpo estranho num mundo ignoto.
- Vale a luta do rebelde,
arrabalde enlouquecido,
fúria de vulcão!

Fadiga? Jamais!
Quero ver-te úberes cheios
Derramando louvores sobre os meus.

Reservas-me grandes searas.
Ah, sim! Quantas searas sonho abraçar contigo!
Lavrar o solo e poder compartilhar
do momento da germinação,
como a mãe aguarda ansiosamente
o nascimento de seu rebento.

Mar Orfeu foi despertado
E os céus desabaram
feito o prelúdio de uma tempestade
com fumaça, pólvora, chumbo,
fogo, cadáveres, torturas,
tudo derramado na mata escura.

Neste inferno de dantes,
e antes que me falte o último suspiro,
restam-me os músculos enraivecidos
que trepidam, demovidos de qualquer razão,
senão aquela coletiva que o momento vaticina,
pigarros destinados a minha maledicência,
reios da crença que me acobertam.

Meu sangue é teu e
em teus braços não temo a morte.
Se o instrumento que me era reservava ao labor,
para lavrar-te e intumescer teu ventre de novas sementes,
é o que me sobra para manuseio frenético
debaixo deste temporal.

O sangue que jorra do meu corpo
Não mancha teu manto avermelhado
- que é a cor dos umbrais dos deuses -
se do teu seio vem-me a seiva
que agora derramo perdidamente.

Vejo vultos.
Vejo vultos avulsos, saltimbancos,
Avançando uns contra outros.
Grito! E meu grito não é de dor.
Grito porque sei que sofres
ao ver teus filhos desfilados,
definhando e desafiando o sonho coletivo,
como se o mistério da criação fosse rompido
e tudo não passasse de um detalhe
passível e possível de imitação.

Como a heresia de um destino
meu sangue forma a poça onde falece
caótica a massa que me sustenta.
Massa sem pão, pois o pão que tinha 
haveria de ser colhido,
A pouco, será o cerol a colar meu corpo
finalmente em teu seio,
solo materno pelo qual justifiquei
minha valentia.

Que os membros dilacerados,
a dor intangível, o cheiro de morte,
não tenha registro de fatalidade.
Mas que seja a semente que aqui se planta c
como o marco indelével e tributo à função social da propriedade.

Mãe terra, dai-me teu colo por fim,
ainda que não há tenho conquistado,
pois queiramos ou não,
a todos nos receberás um dia.


* Sobre o massacre de Corumbiara/RO (1995)
Os camponeses que viveram vinte e cinco anos na esperança da terra prometida, de repente abismaram-se num inferno dantesco, onde homens foram executados sumariamente, mulheres foram usadas como escudos por policiais e jagunços, 355 pessoas foram presas e torturadas por mais de vinte e quatro horas seguidas e o acampamento foi destruído e incendiado com todos os parcos pertences dos posseiros. O acampamento foi atacado de madrugada com bombas de gás que a todos sufocava, especialmente as crianças. O tiroteio era ensurdecedor.
Naquele dia morreram onze pessoas, inclusive a pequenina Vanessa, de apenas seis anos, cujo corpinho foi trespassado por uma bala "perdida". Cinquenta e cinco posseiros foram gravemente feridos. Os laudos tanascópicos provaram execuções sumárias. O bispo de Guajará Mirim recolheu amostras de ossos calcinados em fogueiras do acampamento e enviou à Faculté de Médicine Paris-Oeste, que confirmou a cremação de corpos humanos n acampamento da Fazenda Santa Elina.
Na apuração dos fatos, nos processos judiciais e no júri, ficou evidenciado que os camponeses é que pagaram muito cao por terem sonhado com o acesso à terra. Ninguém foi responsabilizado pelas torturas que aquelas pessoas sofreram, os órfãos e as viúvas estão desamparados, existe gente desaparecida até hoje, e muitos trabalhadores por seqüelas causadas pelos maus tratos recebidos dutante a "desocupação" da fazenda Snata Elina. (texto: O Massacre de Corumbiara: mais de dez anos de violência e impunidade. Revista Caros Amigos, 2005.