Lendo a coluna do LENIO da semana passada (Senso Incomum do CONJUR), me recordei muito de quando fui "iniciado" na crítica do Direito Penal pela Amiga e Mestre RENATA ALMEIDA DA COSTA!
E depois, a partir da organização de eventos pelo DA da Faculdade de Direito da UPF, o pensar (n)as Ciências Criminais ganhou força com o contato direto e a lucidez do amigo, e então Desembargador, ARAMIS NASSIF, e com a chegada do Professor lá da Lagoa Vermelha e irmão LUIZ FERNANDO PEREIRA NETO!
Bah!
Ir para a capital (Porto Alegre), ou estando lá, e acompanhar as sessões da 5a CÂMARA CRIMINAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, era sempre uma alegria imensa, pois eram verdadeiras aulas, memoráveis! Quanto pensar no "se, porque, quando e como proibir, julgar e punir" do FERRAJOLI... Quanta ciência colocada à prova! Quanta humanidade dos julgadores nos julgamentos! Quanto avanço em direção à Democracia! Quanta luta por um Direito Penal e Processual Penal libertário, humano e democrático!
Saudades...
Boa leitura,
Prof. Matzenbacher
As
fontes de Direito e os rótulos de água mineral
Por Lenio Luiz Streck
Um case antigo
e sua novação
A coluna
desta semana aborda um tema que há muito venho trabalhando em meus escritos: a
cegueira seletiva de nossa práxis jurídica quanto ao tratamento dado aos crimes
contra o patrimônio em relação àqueles tipos penais que atingem interesses
metaindividuais, como a sonegação fiscal, a apropriação indébita previdenciária
e o descaminho (para falar só destes).
Saiu
no blog de um renomado magistrado a sentença de uma juíza (leia aqui)
na qual ela extingue a punibilidade dos fatos atribuídos a um acusado que
subtraiu uma determinada quantia em dinheiro e em cheque e que depois,
espontaneamente, restituiu os valores.
Alegrou-me
muitíssimo ver o que só posso conceber como um fruto da boa semente que há
tempos plantamos, primeiramente, na 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Alçada do
Rio Grande do Sul e depois na 5a Câmara Criminal do Tribunal de
Justiça do RS (e aqui homenageio os que compunham esse front:
Amilton Bueno de Carvalho, Aramis Nassif, Luis Gonzaga Moura da Silva, depois a
Genaceia Alberton). Fazíamos esse debate antes mesmo da lei que instituiu o
famoso Refis! Buscando em meus arquivos, verifiquei que minha primeira
publicação abordando a questão data de 1990, portanto, há 23 anos, como veremos
na sequência. Sou antigo nisso, pois não?
Uma
das grandes alegrias que a academia proporciona — especialmente em tempos de
câmbio paradigmático — é a possibilidade de intervir positivamente na
construção (e na desconstrução) das estruturas fundantes da vida jurídica e
política da República. Especialmente quando se trabalha numa perspectiva
crítica como venho defendendo ao longo dos anos. Não me canso de lembrar que a
boa nova constitucional pegou despreparada a comunidade jurídica em Terrae
Brasilis. Tal qual naMarcondo, de Garcia Marquez, onde aos
habitantes faltava palavra para nomear um novo mundo que se desvelava após o
longo sono, também aqui o despertar para a democracia e para o Estado
Democrático de Direito emudecia, obrigando-nos quase a ter que apontar o dedo
quando queríamos indicar o desconhecido.
Compreender
a importância de uma nova teoria para um novo paradigma é passo fundamental
para que este se estabeleça e crie raízes. Do contrário, assistir-se-á o ancien
régime perdurar travestido de uma nova roupagem. Romper com a tradição
inautêntica (no sentido gadameriano), é, pois, o primeiro passo. Consolidar a
autêntica, um segundo igualmente necessário. Por óbvio isso não se dá sem dor
ou luta. Muitas vezes se grita sozinho ou acompanhado de outros poucos que se
dispõem ao bom combate. Ter por fruto a consolidação disso é bastante
alentador.
Fundamentos
e resultados
De se
destacar, contudo, que embora concorde com a conclusão (da aludida sentença) de
que deve ser reconhecida a extinção da punibilidade, entendo que a referida
decisão merece reparos nos fundamentos utilizados. Ah, alguém dirá: estou sendo
muito exigente e, quiçá, chato. Não é nada disso. Não é nenhum diletantismo de
minha parte. O raciocínio é de princípio e não circunstancial. Embora tenhamos
chegado ao mesmo destino, os caminhos foram divergentes — e
nessa viagem importa muito o trajeto. Há alguns atalhos que não podem ser
admitidos, sob pena de se comprometer a integridade e a coerência do Direito,
pois abrem frestas para que, em outros casos, resultados contrários ao Estado
de Direito sejam buscados, sob as mesmas circunstâncias. E, pior, alcançados.
Como diz o ditado popular, mesmo um relógio parado acerta as horas duas vezes
por dia... Todo argumento circunstancial tem suas razões fincadas no
utilitarismo e, como tal, instrumentaliza-se. E o que isso quer dizer? Que,
como todo instrumento, pode ser usado para construir ou destruir... É aí que
reside o perigo. E este foi o motivo pelo qual desenvolvi a Crítica
Hermenêutica do Direito. Em todo caso, vamos, primeiramente, aos pontos de
contato.
De há
muito venho denunciando o fenômeno da baixa constitucionalidade. Desde as
primeiras edições do Hermenêutica Jurídica (e)m Crise, nos idos dos
anos 1990. E especificamente acerca da seletividade penal e das disparidades de
tratamento entre os delitos individuais (em especial nos crimes contra o
patrimônio cometidos sem violência à pessoa) e os metaindividuais (sonegação
fiscal, apropriação indébita previdenciária, crimes contra o sistema financeiro
e por aí vai), ainda no longínquo ano de 1990 publiquei um texto[1] em
que abordei o paradoxo criado entre a minorante do artigo 16 do Código Penal[2] e
a Súmula 554 do STF, [3] um
flagrante caso de ferimento do princípio constitucional da isonomia. A
Constituição estava ainda quentinha.
Com o
advento da lei 9.249/95, ainda no ano de 1996, emiti parecer que foi
integralmente transcrito no voto do relator de uma apelação criminal em que
opinei pela extinção da punibilidade da prática de um furto, fundamentado no
princípio constitucional da isonomia, apontando que deveria a patuleia receber
o mesmo benefício dado ao sonegador fiscal pelo artigo 34 da lei 9.249/95
(leia aqui).[4]Vejam:
no caso, nem houve a devolução espontânea. Já dizia eu, então, que isso era
irrelevante (o artigo e o acórdão explicam as razões disso).
Não
estamos a lidar com nenhuma “descoberta da pólvora”! Essa foi descoberta
juntamente com Amilton Bueno de Carvalho, o Alfredo Foerster (que transcreveu
integralmente meu parecer acima citado em seu voto) e o Clademir Missaggia (o
juiz do caso, à época, que, faço justiça, no primeiro grau foi o primeiro no
Brasil a aplicar a minha tese). Poucos sabem das dificuldades de sermos
pioneiros em teses como essa em meados da década de 90 do século passado, agora
abordada na referida sentença. Eram duros tempos (para quem tem dúvida, basta
ver como “a dogmática penal avançou” — estou sendo irônico, é claro!). Fica
aqui o registro para que não esqueçamos que a filtragem
hermenêutico-constitucional é algo que advém de uma construção que já tem um
bom tempo.
No
mesmo instante em que aplaudimos e nos filiamos à denúncia da seletividade do
sistema penal, fica em nós a convicção de que teses assim como a que eu e o
Amilton Bueno de Carvalho desenvolvemos há quase vinte anos — por nostalgia,
remeto o link para um instante em que debatíamos a tese em um
Congresso do Instituto de Direito — ainda causem surpresas ou pareça algo
inovador (veja foto).
E, o pior: a sentença referida “esqueceu” de mim e do Amilton (e do Forster e
do Clademir). De todo modo, parece que a dogmática jurídica tem dificuldade em
realizar a Constituição. Depois disso desses primeiros casos, exarei inúmeros
pareceres em muitos acórdãos, um deles citando meu nome na ementa do julgado,
que assim dispõe:
ESTELIONATO.
ÔNUS DA PROVA.
No
estelionato, mesmo que básico, o pagamento do dano, antes do oferecimento da
denúncia, inibe a ação penal. O órgão acusador deve tomar todas as providências
possíveis para espancar as dúvidas que explodam no debate judicial, pena de não
vingar condenação (Magistério de Afrânio Silva Jardim).
Lição
de Lênio Luiz Streck: os benefícios concedidos pela Lei Penal aos delinquentes
tributários (Lei 9.249/95, artigo 34) alcançam os delitos patrimoniais em que
não ocorra prejuízo nem violência, tudo em atenção ao princípio da isonomia.
Recurso provido para absolver o apelante. (BRASIL. TARS. 2ª Câmara Criminal.
Apelação criminal nº 297.019.937. Relator: Amilton Bueno de Carvalho. Data do
julgamento: 25 de Setembro de 1997). (íntegra aqui)
Bingo!
A patente, por assim dizer, está registrada de há muito! Seu aspecto é,
fundamentalmente, simbólico. Ou seja, serve muito mais para mostrar as possibilidades
do novo e denunciar as idiossincrasias do sistema. Observe-se: em artigo de
1996,[5] eu
abordava a problemática relacionada as possibilidades de aplicação do artigo 34
da Lei 9.249/95 aos delitos contra o patrimônio nas hipóteses em que houver
ausência de prejuízo à vítima e que não tenha, a evidência, havido violência
contra a mesma.
No
referido texto já enfrentava, de início, o tópico relacionado com a concepção
de bem jurídico e as “antinomias” do ordenamento jurídico, a partir da análise
e discussão do artigo 16, do Código Penal, de 1984, a Súmula 554 do Supremo
Tribunal Federal — de edição anterior ao artigo 16 —, bem como da Lei n. 9.249
de 26 de dezembro de 1995, que permite àquele que sonegar impostos ou
contribuições sociais escapar da punição, com o simples pagamento do valor
sonegado antes do recebimento da denúncia. Mais do que isso, sempre sustentei
que: ou se aplica o favor legis também para quem furta ou se
declara a inconstitucionalidade.
A
sentença da juíza — que ora comento, muito mais por ter omitido a origem da
tese —, além de não ser inovadora, como já destacado, contém erros que precisam
ser apontados. Há uma baixa compreensão do significado do que seja princípio da
isonomia dentro de um paradigma de Estado Democrático de Direito.
Diz
ela, em uma passagem, que “o princípio da isonomia é um princípio geral de todo
o ordenamento jurídico, que tem como destinatários tanto o legislador como os
aplicadores do direito. Segundo ele, todos são iguais perante a lei, não se
admitindo privilégios e distinções em situações que se assemelham.”
Não. O
princípio da isonomia não é um princípio geral. É importante anotar, neste particular,
a confusão que se faz entre o conceito de princípio jurídico, o de ordenamento
e suas consequências para o caso. E desde já aproveitando o ensejo para sugerir
a leitura da obra de Rafael Tomaz de Oliveira, que magistralmente aborda o tema
em uma dissertação sob minha orientação e que se tornou referência no Brasil
sobre o tema.[6] Façamos
essa análise por partes:
a) em
primeiro lugar, a utilização da ideia de isonomia como um princípio geral
remete-nos para o caso dos velhos princípios gerais do direito que,
no Direito brasileiro, assumem a condição de determinação legislativa, sendo
expressamente estabelecido como critérios de solução para as “lacunas” do
ordenamento no artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro,
ao lado da analogia — também utilizada no esforço hermenêutico da julgadora — e
dos costumes. Isso é um sintoma! Na verdade, o senso comum teórico dos juristas
trata do problema como se estivéssemos, ainda, sob a égide da metodologia
novecentista que operava com um sistema em que os princípios gerais eram
chamados para atuar nos casos em que o modelo de regras não fosse suficiente
para resolver os problemas da realidade.[7] Não
deixa de ser sugestivo o fato de que este tipo de estratégia legislativa tenha
sido utilizada, pela primeira vez, nos códigos dos oitocentos. Tais códigos
tinham uma feição nitidamente privativista. Mas, o mais emblemático é que esses
velhos axiomas — que foram chamados no século XIX de Princípios Gerais do
Direito — continuam a ser aplicados em pleno Constitucionalismo Contemporâneo,
como se houvesse apenas uma mera continuidade entre a nova Constituição e
o ancién regime jurídico. Portanto, é preciso ter presente,
desde já, que no contexto do Constitucionalismo Contemporâneo os princípios
assumem uma dimensão normativa de base.
b) A
associação da ideia de princípio geral com o conceito de ordenamento jurídico,
por outro lado, oferece uma ótima amostra do anacronismo que acomete o direito
brasileiro. Com efeito, o conceito de ordenamento jurídico foi inaugurado por
Kelsen e, depois, difundido nos países de línguas latinas por Norberto Bobbio,
a partir de seu clássico Teoria do Ordenamento Jurídico — de
confessadas inspirações kelsenianas —, cuja publicação remonta ao final da
década de 50 e ao início da década de 60. Para Bobbio, a teoria do
ordenamento representava uma integração da teoria da norma jurídica,
cuja premissa elementar pode ser traduzida na seguinte passagem: “as normas
jurídicas nunca existem sozinhas, mas sempre num contexto de normas que tem
relações específicas entre si”.[8] Certamente,
no início da segunda metade do século XX, a ideia de ordenamento representava
uma grande novidade, principalmente nos termos trabalhados pelo jusfilósofo
italiano.
O
ponto determinante para a questão que aqui se ventila é que o ordenamento
jurídico é uma construção teórica específica. Não é um conceito que surge, por
assim dizer, “naturalmente”, na experiência jurídica. No mais, quando emprega o
princípio da isonomia, ao mesmo tempo, como um princípio geral e um princípio
do ordenamento, cria uma estranha simbiose: enquanto princípio geral seria a
isonomia um axioma de justiça, apto a preencher os vácuos deixados pelo sistema
codificado; enquanto princípio do “ordenamento” funcionaria a isonomia como uma
instância epistemológica de legitimação do conhecimento jurídico. Em verdade e
contexto, por exemplo, demonstro a inadequação da “continuidade” entre
princípios gerais e princípios constitucionais. Só isso já dá uma tese.
No
caso, está correto dizer que a isonomia impõe uma decisão igualitária no que
tange ao tratamento repressivo que se dá ao furto e aos crimes tributários.
Todavia, há que se ter em mente que isso se dá em face de a isonomia se
apresentar como um princípio constitucional que apresenta como um fator que
resolve, “pragmaticamente” o caso apresentado. A invocação da isonomia como um
“princípio geral do ordenamento” enfraquece o argumento na medida em que traria
para o julgador uma espécie de abertura interpretativa quando, na verdade, o
que ocorre é um fechamento: a interpretação constitucionalmente adequada do
caso impõe que o tratamento dos casos se dê de forma igualitária.
Vê-se,
também, que a sentença em várias passagens diz estar aplicando “analogia in
bona partem”. Que podemos dizer sobre a propalada figura da analogia em
tempos pós-virada linguística e sob o paradigma da Crítica Hermenêutica do
Direito? Demandar o artigo 3º do Código de Processo Penal também me preocupa
profundamente (para usar a analogia, esta deveria estar acompanhada de
interpretação conforme ou nulidade parcial sem redução de texto).[9] Isto
porque a analogia remete a uma escolha. Isto é, ao juiz para garimpar o
fundamento por meio de um processo que fica ao seu alvedrio, à sua vontade
(vontade essa que é “do poder”, lembrando sempre o último princípio epocal da modernidade,
a Wille zur Macht — pelo qual se institucionalizou o
decisionismo judicial). Trata-se de uma postura positivista atrelada, ainda, ao
positivismo exegético ou legalista, como costuma chamá-lo Castanheira Neves.
Assim, conceitos como o de analogia e princípios gerais do direito (axiomas do
século XIX) devem ser encarados também nessa perspectiva de construção de um
quadro conceitual rigoroso, que representaria as hipóteses — extremamente
excepcionais — de inadequação dos casos às hipóteses legislativas. Dispositivos
como o do artigo 3º do CPP funcionariam como uma espécie de fechamento
autopoiético do sistema jurídico, mas, na verdade, permitem discricionariedades
e decisionismos, em frontal incompatibilidade com uma leitura hermenêutica do
sistema jurídico, superadora do esquema sujeito-objeto (filosofia da
consciência). Nesse ponto, na medida em que não há uma referência à
normatividade constitucional, a analogia — feita nestes moldes — é tecnicamente
inconstitucional.
Com
efeito, na era dos princípios, do constitucionalismo e do Estado Democrático de
Direito, não é mais possível falar em “omissão da lei” que pode ser
“preenchida” a partir da analogia [e também dos costumes (quais, por sinal?) e
dos princípios gerais do Direito].
Numa
palavra final
Fazer
teoria crítica no Brasil é uma tarefa extremamente difícil. Mormente nos anos
1980 e 1990. Isso deveria ser lembrado e reconhecido em decisões contemporâneas
que, por vezes, esquecem o que se passou (e como se hoje vivêssemos o
nirvana!). E, fundamentalmente, elaborar decisões críticas ou propagar a
crítica do direito (penal ou processual) requer coerência e integridade. Por
exemplo, se alguém gosta da tese que inventei lá nos anos 1990 e apliquei já em
1996 sobre a isonomia entre a Lei da Sonegação e os crimes patrimoniais sem
violência, deveria também aplicar a inconstitucionalidade da reincidência
(também sufragada por Amilton e outros — embora a tese esteja sob repercussão
geral ainda não julgada, não há efeito vinculante e, portanto, não há óbice de
ser aplicada), a pena abaixo do mínimo (há súmula do STJ, mas que não há efeito
vinculante), a rejeição dos princípios-que-não-são-princípios como
os da “confiança no juiz da causa”, enfim, outras teses que foram sendo
construídas e reconstruídas por mim nestes anos todos. Veja-se que, por
exemplo, a 5ª Câmara Criminal do TJ-RS ficou sozinha anulando ações penais nas
quais, antes da lei de 2004, não havia sido assegurada a presença de advogado
no interrogatório (à época, solitariamente, a 5ª Câmara e eu sustentávamos
"solo", sem nem mesmo o apoio, na maioria das vezes, dos próprios
advogados, que nem se davam conta do problema). E, hoje, entre tantas teses
garantistas que devem ser professadas, a pergunta que faço é: quem está aplicando
o artigo 212 do CPP que explicita o sistema acusatório no processo Penal? Não
seria o artigo 212 uma regra de procedimento que assegura direitos fundamentais
(leia aqui)?
Insisto: quem está, efetivamente, aplicando o artigo 212 do CPP?
Uma
outra dificuldade para se falar em garantismo no Brasil — que deve ser bem
compreendido como instrumento de limitação do poder estatal — está ligada a
peculiaridade de o sistema criar adaptações darwinianas para problemas que são
derivados de excessos praticados por algum órgão do Estado. Veja-se o caso dos
embargos — sejam eles declaratórios ou infringentes — que são, de algum modo,
uma maneira do sistema responder a decisões arbitrárias proferidas pelo
judiciário (afinal, um sentença omissa, obscura ou contraditória pode ser
considerada arbitrária, pois não? Uma vez que mal fundamentada...). No caso dos
embargos infringentes — principalmente naquele caso em que a previsão,
legislativa ou regimental, tem por característica possibilitar ao réu de
processo penal uma espécie de novo julgamento — o que se tem é a
"desconfiança" quanto à legitimidade daquele acórdão exarado da
autoridade estatal. E, por vezes, com toda a razão, mormente quando a decisão
guerreada viola direitos fundamentais do acusado. Nestes casos, não há como se
negar o direito à revisão dos equívocos, pela simples razão de que se está
diante de violação de regras atinentes ao devido processo legal e à questão da
definição acerca do conceito de prova. Isso funciona como qualquer questão de
inconstitucionalidade, ou seja, é, por assim dizer, “uma questão de ordem
pública”, com uma dose de substancialidade que supera o aspecto procedimental
(relembro, aqui, o debate que faço com as posturas procedimentalistas em Jurisdição
Constitucional e Hermenêutica). Nesse sentido, minha discussão antiga
acerca do papel dos predadores internos e externos do Direito, em que os
embargos acabam sendo, vistos em sentido lato, lamentavelmente um mal necessário.
E, de fato, o são. Ruim com eles, o caos sem eles. Por que isso é assim? A
crítica do Direito vem se debruçando sobre isso.
Todavia,
é necessário ter claro que essas correções sistêmicas não atingem aquilo que é
o âmago do problema que e justamente o agigantamento de poder que recai sobre o
Judiciário. Algo que, por sua vez, deve-se ao próprio parlamento que aprovou as
mais diversas reformas — processuais e constitucionais — que conferiram ao
Judiciário instrumentos de poder, nunca dantes observados em outras ordens
jurídicas democráticas. Súmulas vinculantes, súmulas impeditivas de recursos,
repercussão geral, enfim, tudo se encaixa em torno de uma mesma volta redonda
(para homenagear Faoro). E o sistema, certamente, responde. Se de forma adequada
ou não é uma outra história...
Enfim,
a coluna teve esse duplo efeito: elogiar a decisão da ilustre juíza e
incentivá-la no sentido de que continue nessa trilha garantidora e aumente o
rol desse tipo de tese e, ao mesmo tempo, chamar a atenção para o, digamos
assim, DNA da história institucional da tese adotada.
Por
isso, em um país como o nosso, fazer teoria crítica pode merecer críticas...
mas o mínimo que ser quer é que sejam preservadas as fontes. Como nos rótulos
de água mineral!
[1] STRECK,
Lenio Luiz. O artigo 16 do Código Penal e Súmula 554 - A Injustiça de uma
Antinomia não resolvida. Revista de Direito do Ministério Público,
Rio Grande do Sul, v. 26, 1990.
[2] “Art.
16 - Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o
dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato
voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços.”
[3] “O
pagamento de cheque emitido sem provisão de fundos, após o recebimento da
denúncia, não obsta ao prosseguimento da ação penal.”
[4] STRECK,
Lenio Luiz. A filtragem hermenêutico constitucional do direito penal: um
acórdão garantista. Revista Doutrina, Rio de Janeiro, v. 9, p.
390-402, 1998.
[5] STRECK,
Lenio Luiz. A nova lei do imposto de renda e a proteção das elites: questão de
‘coerência’. Revista Doutrina – Instituto de Direito, n. 1, p. 484 a
496, 1996.
[6] OLIVEIRA,
Rafael Tomaz. Decisão judicial e o conceito de princípio: a
hermenêutica e a (in)determinação do direito. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2008.
[7] Cf. Verdade
e Consenso. 4 ed. São Paulo: Sariva, 2011, p. 173. Para uma crítica à
indeterminação do conceito de princípio no âmbito do pensamento jurídico Cf.
Tomaz de Oliveira, Rafael. Decisão Judicial e o Conceito de Princípio. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2008,passim.
[8] Cf.
Norberto Bobbio. Teoria geral do direito, ob. cit., p. 173.
[9]
Art. 3º. A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e
aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito.
Lenio
Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e
pós-Doutor em Direito. Assine oFacebook.
FONTE:
Revista Consultor Jurídico, 21 de março de 2013