O Ministério Público (MP) tem, sim, competência para realizar, por sua iniciativa e sob sua presidência, investigação criminal para formar sua convicção sobre determinado crime, desde que respeitadas as garantias constitucionais asseguradas a qualquer investigado. A Polícia não tem o monopólio da investigação criminal, e o inquérito policial pode ser dispensado pelo MP no oferecimento de sua denúncia à Justiça.
Entretanto, o inquérito policial sempre será comandado por um delegado de polícia. O MP poderá, na investigação policial, requerer investigações, oitiva de testemunhas e outras providências em busca da apuração da verdade e da identificação do autor de determinado crime.
Com esse entendimento, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) indeferiu, por votação unânime, o Habeas Corpus (HC) 89837, em que o agente da Polícia Civil do Distrito Federal Emanoel Loureiro Ferreira, condenado pelo crime de tortura de um preso para obter confissão, pleiteava a anulação do processo desde seu início, alegando que ele fora baseado exclusivamente em investigação criminal conduzida pelo MP.
Caso ainda em suspenso no STF
O relator do processo, ministro Celso de Mello, optou por apresentar seu voto, independentemente do fato de que ainda está pendente de julgamento, pelo Plenário da Suprema Corte, o HC 84548, no qual se discute justamente o poder investigatório do MP.
Ele citou vários precedentes da própria Corte para sustentar seu ponto de vista em favor do poder de investigação criminal do MP. Um deles foi o caso emblemático do recurso em HC (RHC) 48728, envolvendo o falecido delegado do extinto Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) de São Paulo Sérgio Paranhos Fleury, tido como personagem-símbolo do então existente “Esquadrão da Morte”, suspeito de eliminar adversários do regime militar e de torturar presos políticos, em ação realizada pelo próprio MP.
No julgamento daquele processo, realizado em 1971 sob relatoria do ministro Luiz Gallotti (falecido), a Corte rejeitou o argumento da incompetência do MP para realizar investigação criminal contra o delegado. A investigação contra Fleury fora comandada pelo então procurador Hélio Bicudo, integrante do MP paulista.
Outro precedente citado pelo ministro Celso de Mello foi o julgamento, pelo Plenário do STF, da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1517, relatada pelo ministro Maurício Corrêa (aposentado), em que a Suprema Corte também reconheceu que não assiste à Polícia o monopólio das investigações criminais.
Caso análogo
O relator se reportou, ainda, ao julgamento do HC 91661, de Pernambuco, relatado pela ministra Ellen Gracie, também envolvendo um policial, em que a Segunda Turma rejeitou o argumento sobre a incompetência do MP para realizar investigação criminal.
O ministro Celso de Mello ressaltou, em seu voto, que este poder investigatório do MP é ainda mais necessário num caso como o de tortura, praticada pela polícia para forçar uma confissão, desrespeitando o mais elementar direito humano, até mesmo porque a polícia não costuma colaborar com a investigação daqueles que pertencem aos seus próprios quadros.
“O inquérito policial não se revela imprescindível ao oferecimento da denúncia, podendo o MP deduzir a pretensão punitiva do estado”, afirmou o ministro Celso de Mello, citando precedentes em que o STF também considerou dispensável, para oferecimento da denúncia, o inquérito policial, desde que haja indícios concretos de autoria.
“Na posse de todos os elementos, o MP pode oferecer a denúncia”, completou. “O MP tem a plena faculdade de obter elementos de convicção de outras fontes, inclusive procedimento investigativo de sua iniciativa e por ele presidido”.
Também segundo ele, a intervenção do MP no curso de um inquérito policial pode caracterizar o poder legítimo de controle externo da Polícia Judiciária, previsto na Lei Complementar nº 75/1993.
Competência constitucional
Contrariando a alegação da defesa de que a vedação de o MP conduzir investigação criminal estaria contida no artigo 144, parágrafo 1º, inciso IV, da Constituição Federal (CF), segundo o qual caberia à Polícia Federal exercer, “com exclusividade, as funções de Polícia Judiciária da União” – o que excluiria o MP –, todos os ministros presentes à sessão da Turma endossaram o argumento do relator.
Segundo ele, a mencionada “exclusividade” visa, apenas, distinguir a competência da PF das funções das demais polícias – civis dos estados, polícias militares, polícias rodoviária e ferroviária federais. Foi esse também o entendimento manifestado pelo subprocurador-geral da República, Wagner Gonçalves, presente ao julgamento.
Celso de Mello argumentou que o poder investigatório do MP está claramente definido no artigo 129 da CF que, ao definir as funções institucionais do MP, estabelece, em seu inciso I, a de “promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei”. No mesmo sentido, segundo ele, vão os incisos V, V, VII, VIII e IX do mesmo artigo.
O ministro ressaltou que o poder investigatório do MP é subsidiário ao da Polícia, mas não exclui a possibilidade de ele colaborar no próprio inquérito policial, solicitando diligências e medidas que possam ajudá-lo a formar sua convicção sobre determinado crime, como também empreender investigação por sua própria iniciativa e sob seu comando, com este mesmo objetivo.
Recursos
Condenado em primeiro grau, o policial recorreu, sucessivamente, sem sucesso, ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDFT) e ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), com o mesmo argumento da nulidade do processo. Contra a decisão do STJ, ele impetrou HC no Supremo.
Em 17 de outubro de 2006, o relator, ministro Celso de Mello, rejeitou pedido de liminar formulado no processo. A defesa ainda recorreu dessa decisão por meio de agravo regimental, mas a Segunda Turma não conheceu do recurso, em novembro daquele mesmo ano. A Procuradoria Geral da República opinou pela denegação do pedido.
HC 85419
Os mesmos fundamentos que resultaram no indeferimento do HC 89837, do DF, foram utilizados, também hoje, pela Segunda Turma do STF, para indeferir o HC 85419, impetrado em favor de dois condenados por roubo, extorsão e usura no Rio de Janeiro. Segundo a denúncia, apresentada com base em investigação conduzida pelo Ministério Público, um dos condenados é um ex-policial civil que estaria a serviço de grupos criminosos. Segundo o relator do processo, ministro Celso de Mello, as vítimas do condenado procuraram promotor de Justiça para denunciar a extorsão por não confiar na isenção da Polícia Judiciária para investigar o caso.
Fonte: STF (em 20/10/2009)