A SOCIEDADE BRASILEIRA PARA O PROGRESSO DA CIÊNCIA (SBPC) e os demais subscritores e subscritoras deste, todos devidamente identificados abaixo, cientes da extrema importância social e constitucional do objeto da ADPF n. 54, promovida pela CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES NA SAÚDE (CNTS), vem à presença de Vossa Excelência, com a lídima intenção de fornecer subsídios para v. decisão dessa Excelsa Corte, respeitosamente, prestar as seguintes informações, embasadas exclusivamente em estudos científicos e tecnológicos, bem como tecer algumas considerações que reputam imprescindíveis, data venia, para o julgamento dessa ação:
1.- DA CERTEZA CIENTÍFICA SOBRE A INCOMPATIBILIDADE DA ANENCEFALIA COM A VIDA.
A anencefalia constitui grave malformação fetal que resulta da falha de fechamento do tubo neural, cursando com ausência de cérebro, calota craniana e couro cabeludo, aparecendo entre o 24º e 26º dia após a fecundação[1] (ACOG, 2003; Forrester et al., 2003).
A maior parte dos fetos anencefálicos (em torno de 65%) apresenta parada dos batimentos cardíacos fetais antes do parto[2,3] (Medical Task Force on Anencephaly, 1990; Shaw et al., 1994; Fernandez et al., 2005).
Um pequeno percentual desses fetos anencefálicos apresenta batimentos cardíacos e movimentos respiratórios fora do útero, funções que podem persistir por algumas horas e, em raras situações, por alguns dias (Jaquier et al., 2006; CDC, 2007; Cook et al., 2008).
É freqüente a associação da anencefalia com outras anomalias fetais: cerca de 30% dos fetos anencefálicos apresentam malformações cardíacas, pulmonares, renais, gastrintestinais, entre outras (Medical Task Force on Anencephaly, 1990).
A Organização Mundial de Saúde (OMS, 1998) recomenda a não realização de manobras de ressuscitação cardiorrespiratórias em casos de anencefalia, pois a anomalia é incompatível com a vida.
Em 1990, grupo de trabalho para o estudo da anencefalia, constituído por representantes de diversas associações médicas norte-americanas [4], concluiu que, em virtude da inexistência de córtex e de fluxo sanguíneo cerebral, é dispensável a realização de exames complementares, como eletroencefalograma, para atestar a inexistência de atividade cerebral nos casos de anencefalia (Medical Task Force on Anencephaly, 1990).
O Conselho Federal de Medicina considera que, nos casos de anencefalia, é desnecessária a aplicação dos critérios de morte encefálica pela inviabilidade vital em decorrência da ausência de cérebro (Resolução CFM Nº 1.752/04).
Nesse sentido, a anencefalia é “resultado de um processo irreversível, de causa conhecida e sem qualquer possibilidade de sobrevida, por não possuir a parte vital do cérebro” [5]
2.- DO DIAGNÓSTICO DE ANENCEFALIA.
O diagnóstico de anencefalia pela ultrassonografia é possível há aproximadamente três décadas (Jonhson et al, 1997; Aubry et al, 2003).
Esse diagnóstico é efetuado com 100% de precisão, não ocorrendo falso-positivos, como demonstrado por diversos estudos (Johnson et al, 1997; Isaksen et al, 1998; Lennon & Gray, 1999; Boyd et al, 2000; Rankin et al, 2000; Chatzipapas et al, 1999; Birnbacher et al, 2002; Aubry et al, 2003; Norem et al, 2005; Richmond & Atkins ,2005; OMS, 2009).
A sensibilidade da ultrassonografia é de 100% para a detecção da anencefalia fetal [6] e é desnecessária a realização de procedimentos invasivos ou outros exames para a confirmação diagnóstica.
3.- DA ASSOCIAÇÃO ENTRE A ANENCEFALIA E AS COMPLICAÇÕES MATERNAS E DO ELEVADO RISCO DE MORBI-MORTALIDADE MATERNA.
A literatura científica demonstra a associação entre anencefalia fetal e maior frequência de complicações maternas, como hipertensão arterial e aumento do volume de líquido amniótico (polidrâmnio), trazendo danos físicos à saúde da mulher (Medical Task Force on Anencephaly, 1990; Jaquier et al, 2006, Hatami et al, 2007).
O polidrâmnio é a patologia obstétrica mais frequentemente observada nas gestações de fetos anencefálicos, ocorrendo em 30 a 50% dos casos, o que representa probabilidade mais de 100 vezes superior à observada na população em geral (Medical Task Force on Anencephaly, 1990; Rojas et al, 1995; Pimentel & Cesar, 1999; Abhyankar & Salvi, 2000; Jaquier et al, 2006).
A ocorrência de polidrâmnio eleva o risco de complicações na gravidez, favorecendo o surgimento de alterações respiratórias, hemorragias vultuosas por descolamento prematuro da placenta, hemorragias no pós-parto por atonia uterina e embolia de líquido amniótico (grave alteração que cursa com insuficiência respiratória aguda e alteração na coagulação sanguínea) (Orozco, 2006).
Portanto, a manutenção da gestação eleva o risco de morbi-mortalidade materna.
O sofrimento psíquico gerado pela gestação de um feto anencefálico pode promover quadro de estresse pós-traumático, um transtorno mental de longa duração cujos sintomas podem persistir por toda a vida (Orozco, 2006).
Em 2008, o Comitê Especial para Discussão dos Aspectos Éticos Relativos à Reprodução Humana e Saúde da Mulher, instituído pela Federação Internacional de Ginecologistas e Obstetras (FIGO), concluiu que “o parto de um feto portador de severas malformações pode acarretar prejuízos físicos e mentais à mulher e à família”.
E, exatamente por isso, o referido comitê considerou como anti-ético negar ao casal progenitor a possibilidade de evitar essa situação, e recomendou que, nos países onde essa prática é legalmente aceitável, deve ser oferecida a antecipação terapêutica do parto sempre que uma malformação congênita incompatível com a vida seja identificada durante a avaliação pré-natal [7] (FIGO, 2008).
4.- DAS CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Considerando (1) que o avanço tecnológico e científico possibilita o diagnóstico de certeza da anencefalia fetal, (2) que o diagnóstico pela ultrassonografia e os procedimentos para antecipação terapêutica do parto são disponibilizados pelo SUS em todo o país e, ainda, (3) que o acesso ao progresso da ciência e à assistência plena à saúde é direito de todos os cidadãos e cidadãs, e beneficia a sociedade ao detectar precocemente a anencefalia, é preciso afirmar que a impossibilidade de antecipação do parto, obrigando-se as gestantes de fetos anencefálicos ao prosseguimento do processo gestacional até o final, traz danos significativos para a sua saúde das mulheres e de sua familia.
Considerando (1) que a antecipação terapêutica do parto, para as mulheres que assim decidirem, de forma consciente e esclarecida, representa o pleno exercício de sua autonomia e, também, (2) que o respeito à autonomia e ao livre arbítrio da mulher vai ao encontro dos valores morais e culturais do indivíduo e da sociedade como um todo, é preciso afirmar que os profissionais não devem impor a essas mulheres as suas preferências pessoais ou crenças, nem devem influenciar a decisão dos pais, brutalmente fragilizados pela doença de seus fetos, em situação de elevada vulnerabilidade.
Aliás, em recente pesquisa que entrevistou mulheres que interromperam a gestação por anomalia fetal incompatível com a vida [8] verificou-se que a decisão pela interrupção se dá a partir do desejo de minimizar o sofrimento, quando a opção é tomada de forma consciente, por meio de reflexão e revisão de crenças e valores.
Assim, com a devida vênia, não é humanamente possível exigir conduta diferente da mulher que gesta feto anencefálico, pois este concepto apresenta morte cerebral, situação de absoluta incompatibilidade com a vida.
Data maxima venia, prolongar a vivência do luto de um filho nessa situação é torturar o ser humano, é submetê-lo a tratamento desumano e degradante.
Portanto, o Estado não tem nenhuma justificativa para defender interesses fetais nos casos de anencefalia, ou seja, nos casos de morte cerebral fetal, impondo, ademais, risco adicional desnecessário e evitável à saúde da mulher.
Assim, caso seja julgada improcedente a ADPF nº 54, data maxima venia, serão negados os avanços científicos e tecnológicos conquistados a custo de muitos esforços e sacrifícios por nossa sociedade, e em especial por nosso sistema sanitário, acarretando um imenso retrocesso na luta pela conquista da plenitude dos direitos humanos sexuais e reprodutivos das mulheres, que ficarão expostas a danos e riscos desnecessários e evitáveis, com reflexos deletérios inevitáveis para toda a sociedade brasileira.
É por isso que a SBPC e os demais subscritores e subscritoras deste ousam afirmar, com o mais profundo respeito a Vossa Excelência e a essa Excelsa Corte, que o julgamento pela procedência da ADPF nº 54, declarando-se, em consonância com o avanço do progresso científico e tecnológico, que a interrupção da gestação de feto anencefálico constitui antecipação terapêutica do parto, não um procedimento abortivo, implicará o reconhecimento de que a saúde é um dos direitos humanos constitucionalmente garantidos e que o Estado deve promover e executar políticas públicas para reduzir os agravos e riscos de todas as pessoas, assegurando, assim, a todos, e especialmente às mulheres, o acesso pleno, universal e igualitário às ações e serviços que promovam a saúde.
Decididamente, a procedência dessa ação significará um imenso passo na luta pela garantia plena dos direitos humanos das mulheres e de toda a sociedade brasileira.
São Paulo, 1º de agosto de 2009.
SBPC – SOCIEDADE BRASILEIRA PARA O PROGRESSO DA CIÊNCIA
Subscreveram este documento, encaminhando mensagens de apoio por e-mail, as seguintes entidades:
1) SOCIEDADE BRASILEIRA PARA O PROGRESSO DA CIÊNCIA – SBPC
2) MINISTÉRIO DA SAÚDE - MS
3) MINISTÉRIO ESPECIAL DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES
4) IPAS
5) CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DE PERNAMBUCO – CREMEPE
6) CONSELHO NACIONAL DOS DIREITOS DA MULHER
7) FEDERAÇÃO BRASILEIRA DAS ASSOCIAÇÕES DE GINECOLOGIA E OBSTETRÍCIA – FEBRASGO
8) HOSPITAL PEROLA BYINGTON
9) CATÓLICAS PELO DIREITO DE DECIDIR
10) CIDADANIA, ESTUDO, PESQUISA, INFORMAÇÃO E AÇÃO – CEPIA
11) CENTRO FEMINISTA DE ESTUDOS E ASSESSORIA – CFEMEA
12) SOCIEDADE BRASILEIRA DE REPRODUÇÃO HUMANA – SBRH
13) REDE LIBERDADES LAICAS BRASIL
14) MARCHA MUNDIAL DAS MULHERES
15) CENTRO INTEGRADO DE SAÚDE AMAURY DE MEDEIROS – CISAM
16) ASSOCIAÇÃO MÉDICA BRASILEIRA
17) INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO
18) UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO – UNIFESP – OBSTETRÍCIA, GINECOLOGIA E SAÚDE COLETIVA
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Notas Bibliográficas:
[1] Cheschier N; ACOG Committee on Practice Bulletins-Obstetrics. ACOG practice bulletin. Neural tube defects. Number 44, July 2003. Int J Gynaecol Obstet. 2003 Oct;83(1):123-33.
[2] The infant with anencephaly. The Medical Task Force on Anencephaly. N Engl J Med. 1990 Mar 8;322(10):669-74.
[3] Shaw GM, Jensvold NG, Wasserman CR, Lammer EJ. Epidemiologic characteristics of phenotypically distinct neural tube defects among 0.7 million California births, 1983-1987. Teratology. 1994 Feb;49(2):143-9.
[4] Academia Americana de Pediatria, Academia Americana de Neurologia, Colégio Americano de Obstetrícia e Ginecologia, Associação Americana de Neurologistas, Sociedade de Neurologia Infantil
[5] Resolução do Conselho Federal de Medicina Nº 1.752/04
[6] Williamson P, Alberman E, Rodeck C, Fiddler M, Church S, Harris R. Antecedent circumstances surrounding neural tube defect births in 1990-1991. The Steering Committee of the National Confidential Enquiry into Counselling for Genetic Disorders. Br J Obstet Gynaecol. 1997 Jan;104(1):51-6.
[7] FIGO Committee for the Ethical Aspects of Human Reproduction and Women's Health. Ethical aspects concerning termination of pregnancy following prenatal diagnosis. Int J Gynaecol Obstet. 2008 Jul;102(1):97-8.
[8] BENUTE Gláucia Rosana Guerra, NOMURA Roseli Mieko Yamamoto, KASAI Keila Endo, DE LUCIA Mara Cristina Souza, ZUGAIB Marcelo. O aborto por anomalia fetal letal: do diagnóstico à decisão entre solicitar ou não alvará judicial para interrupção da gravidez. Revista dos Tribunais. 859, São Paulo, ano 96, p. 485-509, maio 2007.
Sincerely,