domingo, 29 de março de 2009

Gestão da prova pelo juiz = NULIDADE!

Caros,
esse acórdão é endereçado aos alunos de Direito Processual Penal II e III, para verificarem como, na prática, ocorre a violação do princípio acusatório, inerente ao processo penal democrático. Lembrem que a posição do juiz no processo penal DEVE ser de terzietà, de alheamento, conforme prega o processualista italiano Franco Cordero. Ainda, há elementos interessantes sobre a impossível (pseudo)busca da "verdade" no processo penal! 
Boa leitura,
abraços,

Prof. Matzenbacher


PROCESSUAL PENAL. “HABEAS CORPUS”. SISTEMA ACUSATÓRIO. PROVA. GESTÃO. PROVA TESTEMUNHAL PRODUZIDA DE OFÍCIO PELO JUIZ. ILEGITIMIDADE.

- Nulo é o ato processual em que restam agredidos os mandamentos constitucionais sustentadores do Sistema Processual Penal Acusatório.

- A oficiosidade do juiz na produção de prova, sob amparo do princípio da busca da “verdade real”, é procedimento eminentemente inquisitório e agride o critério basilar do Sistema Acusatório: a gestão da prova como encargo específico da acusação e da defesa.

- Lição de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho.

- Ordem concedida, por unanimidade.

 

HABEAS CORPUS

 

QUINTA CÂMARA CRIMINAL

 

N° 70003938974

 

GETÚLIO VARGAS

 

JOÃO LEONIR CECILIO

IMPETRANTE;

LINDOMAR SIMPSEN

PACIENTE E

JUIZA DE DIREITO DA 1ª VARA JUDICIAL DA COMARCA DE GETULIO VARGAS

COATORA

 

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos.

Acordam os Desembargadores integrantes da Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em conceder a ordem para: a) anular a audiência realizada na data de 07-03-2002, determinando a expunção dos autos dos depoimentos nela prestados; e b) determinar a não-realização da audiência de inquirição da testemunha José Laerte.

Custas, na forma da lei.

Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores, Des. Aramis Nassif e Des. Paulo Moacir Aguiar Vieira.

Porto Alegre, 24 de abril de 2002.

 

AMILTON BUENO DE CARVALHO,

Relator.

 

RELATÓRIO

 

AMILTON BUENO DE CARVALHO (RELATOR)  O advogado JOÃO LEONIR CECILO impetrou ordem de habeas corpus, com pedido liminar, em favor do paciente LINDOMAR SIMPSEN, em razão de ato praticado pela Juíza de Direito da 1ª Vara Judicial da Comarca de Getúlio Vargas.

 

De acordo com a exordial, o paciente responde pelo delito tipificado no artigo 157, § 3º, do Código Penal. Sustenta o impetrante, em síntese, que após o encerramento da instrução com oitiva das testemunhas de acusação e defesa – inclusive, com abertura dos prazos dos artigos 499 e 500 do Código de Processo Penal –, a  decisora monocrática, de ofício, designou para o dia 07/03/2002, audiência de oitiva de testemunhas arroladas pelo assistente de acusação.

 

Refuta o ato singular aduzindo ser ele absolutamente nulo, vez que a inquirição de tais testemunhas, após o fim da instrução, subverte o rito processual, violando princípios basilares do Processo Penal e causando evidente prejuízo à defesa.

 

Em apreciação de liminar, o eminente Desembargador Alfredo Foster, por entender tratar-se de pedido a ser processado via correição parcial, determinou que o feito tramitasse nos moldes deste recurso. Indeferida a liminar, solicitou-se informações, determinando-se, após a diligência, vistas ao Ministério Público.

 

 As informações prestadas elucidam que a denúncia, oferecida em 16/06/2000, foi recebida em 25/07/2000. Realizou-se interrogatório em 05/10/2000. Em 13/10/2000, o assistente de acusação arrolou testemunhas cuja oitiva restou indeferida. Em 17/11/2000 foram inquiridas as testemunhas de acusação e em 14/12/2000, as de defesa. O assistente de acusação reiterou pedido de oitiva de testemunhas que anteriormente arrolara, o qual  foi indeferido pelo juiz. Na data de 28/06/2001, o Ministério Público peticionou insistindo na inquirição de tais testemunhas. A magistrada de 1º grau, em 12/12/2001, designou audiência para a sua oitiva.

 

O impetrante interpôs agravo regimental, vislumbrando a reforma da decisão que converteu o presente feito em correição parcial. Pedido que foi acolhido (fls. 12, verso dos autos em apenso), reconsiderando-se a decisão exarada em fls. 27, destes autos, mantendo o processo como habeas corpus.

 

Nesta Instância, a Procuradoria de Justiça, pelo Dr. Lênio Luiz Streck, manifestou-se pelo processamento do feito como no pedido inicial – habeas corpus – com a concessão da ordem nos termos postulados.

 

Em reapreciação de liminar, foi determinada a imediata suspensão do processo hostilizado até o julgamento do habeas e foram solicitadas novas informações no sentido de obter ciência sobre a atual situação do processo.

 

Vieram estas, esclarecendo que se realizou audiência em 07/03/2002, na qual foram ouvidas três das testemunhas arroladas pelo assistente de acusação. Foi designada audiência para 25/04/2002, para a oitiva da testemunha José Laerte, ausente na anterior, e, o processo encontra-se suspenso desde 16/04/2002, por determinação desta Câmara.

 

É o relatório.

 

VOTO

 

AMILTON BUENO DE CARVALHO (RELATOR)  É imperioso reconhecer que a inversão da prova causou tumulto processual – oitiva de testemunhas de acusação após inquirição das de defesa e encerramento da instrução com abertura dos prazos dos artigos 499 e 500 do Código de Processo Penal.

 

Todavia, a insurgência aqui apontada proclama debate que possui considerável primazia ao mero tumulto procedimental acima suscitado. No caso em tela, ocorreu gritante agressão a preceito basilar do Processo Penal Democrático – vulnerado o princípio acusatório!

 

O modelo acusatório acha-se recepcionado pelo texto constitucional de 1988, na forma de garantias fundamentais do cidadão como: a ampla defesa (art. 5°, LV, LVI e LXII), a tutela jurisdicional (art. 5°, XXXV), o devido processo legal (art. 5°, LIV), a presunção de inocência (art. 5°, LVII), o tratamento paritário das partes (art. 5°, caput e I), a publicidade dos atos processuais e motivação dos atos decisórios (art. 93, IX), as garantias do acesso à justiça (art. 5°, LXXIV) e do juiz natural.

 

No particular, a violação ao sistema acusatório se deu por dupla razão. Vejamos:

 

um – ao se permitir a oitiva de testemunhas acusatórias após o encerramento da instrução, violou-se o princípio da ampla defesa e conseqüentemente o contraditório;

 

e,

 

dois – ao determinar “de ofício” a inquirição de testemunhas arroladas pelo assistente de acusação, tomando-as como suas, a ilustre colega agiu de forma a macular a estrutura nuclear do sistema acusatório: a disponibilidade sobre o gerenciamento da prova, como encargos restritos à acusação e a defesa.

 

Para além da mera presença de partes compondo o actum trium personarum, forte no posicionamento do jurista Jacinto Coutinho, entendo que o principal critério diferenciador dos sistemas processuais é o da gestão da prova.  Assim se posiciona o jurista paranaense

 

“se o processo tem por finalidade, entre outras, a reconstituição de um fato pretérito, o crime, mormente através da instrução probatória, a gestão da prova, na forma pela qual ela é realizada, identifica o princípio unificador”.(COUTINHO, Jacinto. Nelson de Miranda. “Introdução aos princípios gerais do direito processual penal brasileiro”. Separata, Curitiba, n. 04, v. 01, pp. 01-37, jan./mar. 2000. p. 02.).

 

 

O autor remete-se as Orddonnance Criminelle – expressiva estrutura inquisitória que se caracterizava pela presença das partes – de Luis XIV, para exemplificar a insuficiência do processo de partes na definição do modelo acusatório.

 

Ao legitimar a oficiosidade desmedida do magistrado na produção da prova, o sistema inquisitório permite ao julgador fazer as vezes de defensor e acusador em processo que ele decidirá ao final. Em outras palavras, propicia ao juiz a prévia eleição de uma tese – como única e absoluta verdade – e a busca desmesurada de meios aptos a comprová-la.

 

Neste rumo, a lógica inquisitorial estabelecida como caminho à solução do caso em debate, me faz presenciar – irresignado, mas não surpreso –, em pleno Estado Democrático de Direito, a busca do malfadado mito da “verdade real”.

 

  Tal estratagema – legado do período negro da história: o medievo – é, no particular, expressa e obstinadamente proclamado pela juíza, Ministério Público e assistência de acusação (fls. 19, 20, 25).

 

Na estreita de tal posicionamento, novamente exponho preciosa lição de Jacinto Coutinho:

 

“Neste ponto, o processo penal acerta as contas com o obscuro: a escolha inquisitorial é determinada pela imagem – quiçá a primeira –, tomada como possível, como real, como verdade: eis o quadro mental paranóico. Decide-se antes (o que é normal no humano, repita-se); e depois raciocina-se sobre a prova para testar a escolha.” (COUTINHO, Jacinto. Nelson de Miranda. “Glossas ao “Verdade, Dúvida e Certeza”, de Francesco Carnelutti, para os Operadores do Direito. In: Anuário Ibero-Americano de Direitos Humanos (2001/2002), p. 186).

 

É salutar que se reconheça o processo como estrutura artificial – criada pelo homem e sujeito à sua falibilidade – que objetiva, da forma mais justa possível, compor um jogo de interesses em questão, no qual a eleição de um posicionamento jamais pode significar a descoberta da única e incontroversa verdade real, mas sim, a valoração das demais versões como não-verdades, o que não as extingue.

 

Por fim, sobre o princípio da “verdade real”, me permito parafrasear Jacinto, citando Carnelutti no já referido texto ”Glossas ao “Verdade, Dúvida e Certeza”, de Francesco Carnelutti, para os Operadores do Direito”, com a brilhante colocação “Em síntese, a verdade está no todo, não na parte; e o todo é demais para nós”. (grifo nosso).

 

O dispositivo legal autorizador do ato aqui hostilizado (artigo 209 do Código de Processo Penal), por si-só, afronta diretamente a Constituição – desrespeita o sistema processual acusatório – induzindo o Processo Penal Democrático a percorrer caminhos que o remetem à era medieval.

 

Nesta linha, a fim de evitar tautologia, aproveito-me das brilhantes palavras do douto Procurador de Justiça Dr. Lênio Luiz Streck, em parecer exarado às fls. 12

 

“Juiz não busca prova de ofício, Juiz não sai correndo atrás de prova. O princípio da verdade vigente no Processo Penal não é o real (sic). É ele uma ficção. A verdade exsurge da intersubjetividade e não de um processo metafísico cognocente praticado pelo intérprete (no caso o juiz).”

 

No específico, além do vício na origem do ato da colega monocrática, melhor sorte não a amparou no momento escolhido à sua realização, a oitiva das testemunhas arroladas pelo assistente de acusação após inquiridas as defensivas, obstruiu a necessária garantia do contraditório na instrução criminal.

 

Deste modo, ante a violação do sistema acusatório e todas as suas garantias, a audiência designada de ofício pela colega Ana Cristina, padece de nulidade absoluta.

 

Diante do exposto, concede-se a ordem para (a) declarar nula a audiência realizada na data de 07/03/2002, determinando a expunção dos autos dos depoimentos nela prestados; e, (b) determinar a não realização da audiência de inquirição da testemunha José Laerte.

 

DES. ARAMIS NASSIF – De acordo.

 

DES. PAULO MOACIR AGUIAR VIEIRA – De acordo.