RECURSO ESPECIAL Nº 1.000.256 - AC (2007/0252121-7)
RELATOR : MINISTRO ARNALDO ESTEVES LIMA
RECORRENTE : JOSÉ RONALDO DE SOUZA
ADVOGADO : RAIMUNDO SEBASTIÃO DE SOUZA
RECORRIDO : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO ACRE
EMENTA
PENAL. RECURSO ESPECIAL. NULIDADE. ALEGAÇÕES FINAIS. DEFICIÊNCIA DE DEFESA. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DE DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL E/OU DE DISPOSITIVO INFRACONSTITUCIONAL VIOLADO. NÃO-CONHECIMENTO. ILEGALIDADE FLAGRANTE. ART. 654, § 3º, DO CPP. CONCESSÃO DE ORDEM DE HABEAS CORPUS DE OFÍCIO.
1. O recorrente não indicou a existência de divergência jurisprudencial ou negativa de vigência à legislação infraconstitucional, o que caracteriza deficiência de fundamentação, a obstar o conhecimento do recurso especial, nos termos do enunciado sumular 284 do STF.
2. Evidenciada flagrante ilegalidade pela deficiência de defesa técnica nas alegações finais, oportunidade em que o defensor se pronunciou pela procedência da denúncia, impõe o reconhecimento, de ofício, da nulidade absoluta.
3. Reconhecida a nulidade absoluta, resta prejudicada a análise da alegada violação aos arts. 156 e 381 do Código de Processo Penal.
4. Recurso especial não-conhecido. Habeas corpus concedido de ofício para anular a ação penal (Processo 262/02) desde a apresentação das alegações finais da defesa, inclusive.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da QUINTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, não conhecer do recurso e conceder "Habeas Corpus" de ofício, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Napoleão Nunes Maia Filho, Jorge Mussi e Laurita Vaz
votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Felix Fischer.
Brasília (DF), 03 de março de 2009(Data do Julgamento)
MINISTRO ARNALDO ESTEVES LIMA
Relator
RELATOR : MINISTRO ARNALDO ESTEVES LIMA
RECORRENTE : JOSÉ RONALDO DE SOUZA
ADVOGADO : RAIMUNDO SEBASTIÃO DE SOUZA
RECORRIDO : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO ACRE
RELATÓRIO
MINISTRO ARNALDO ESTEVES LIMA:
Trata-se de recurso especial interposto por JOSÉ RONALDO DE SOUZA, com fundamento no art. 105, inciso III, alínea a, da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Acre. Consta dos autos que o recorrente foi condenado pela prática do delito tipificado no art. 302 da Lei 9.503/97 (homicídio culposo na condução de veículo automotor) à pena de 2 anos e 3 meses de detenção, em regime aberto, substituída, ao final, por duas penas restritivas de direitos.
Inconformado, o réu interpôs recurso de apelação, arguindo, preliminarmente, a nulidade absoluta do processo por ausência de defesa; e, no mérito, pleiteando a absolvição.
O Tribunal de Justiça do Estado do Acre, por sua vez, negou provimento ao recurso. Eis a síntese do acórdão, litteris (fl. 125): APELAÇÃO CRIMINAL. HOMICÍDIO CULPOSO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. ARTIGO 302 DO CTB. ABSOLVIÇÃO. INVIABILIDADE. INOBSERVÂNCIA DO DEVER DE CUIDADO OBJETIVO. IMPRUDÊNCIA. APELO IMPROVIDO. A inobservância do dever de cuidado objetivo exigível do agente torna a sua conduta antijurídica e culpável, o que a torna passível de repreensão.
Nesta instância, reitera seus argumentos, alegando a nulidade absoluta do processo por ausência de defesa, uma vez que o advogado que o representava à época da apresentação das alegações finais pugnou pela sua condenação, nos termos da manifestação ministerial, não apresentando nenhuma tese em seu favor.
Aduz, ainda, violação aos arts. 156 e 381 do Código de Processo Penal, sustentado que a sentença condenatória encontra-se totalmente divorciada das provas produzidas nos autos.
Contrarazões apresentadas às fls. 155/159.
O Ministério Público Federal manifestou-se pelo parcial provimento do recurso, "acolhendo-se a preliminar argüida, para que seja declarada a nulidade do processo a partir da apresentação das alegações finais pela defesa, renovando-se, assim, os atos subseqüentes" (fls. 167/175).
É o relatório.
VOTO
MINISTRO ARNALDO ESTEVES LIMA (Relator):
Não há como conhecer do recurso.
De início, quanto à tese de nulidade do processo por ausência de defesa, o
recorrente não indicou a existência de divergência jurisprudencial ou negativa de vigência à
legislação infraconstitucional, o que caracteriza deficiência de fundamentação, a obstar o
conhecimento do recurso especial, nos termos do enunciado sumular 284 do STF.
Contudo, tendo em vista a relevância da questão e a flagrante ilegalidade apontada pelo recorrente, conheço da questão de ofício para, nos termos do art. 654, § 2º, do Código de Processo Penal, fazer cessar o constrangimento ilegal sofrido pelo paciente.
A esse respeito, transcrevo o elucidativo parecer lavrado pelo Subprocurador-Geral da República Juarez Tavarez, que pelos percucientes fundamentos, nada
tenho a acrescentar, litteris (fls. 169/174): “Assiste razão ao recorrente quanto à argüição de nulidade pela ausência de defesa. De fato, assim se manifestou o patrono do réu nas alegações finais apresentadas pela defesa: 'A DENÚNCIA É PROCEDENTE, a defesa acompanha a manifestação parcial do Ministério Público, requerendo que seja aplicada a pena mínima ao réu, tendo em vista que o mesmo é primário, prestou socorro à vítima e assistiu financeiramente a família". (fl. 77) (sem grifos no original) Vê-se do trecho acima transcrito que é absolutamente incontestável a afronta à garantia constitucional da ampla defesa, consagrada pelo art. 5º, LV, da Constituição Federal. Como se sabe, a defesa, no processo penal, apresenta-se sob dois aspectos: defesa técnica e autodefesa. Diferentemente da segunda, a primeira é indisponível, na medida em que mais do que garantia ao acusado, é condição de paridade de armas, imprescindível à concreta efetivação do contraditório e, conseqüentemente, à própria imparcialidade do juiz. O momento mais adequado para que a defesa técnica se manifeste em toda a sua amplitude é a fase das alegações finais, pois é nessa ocasião que os interessados criticam as provas, apresentam suas versões e buscam demonstrar o direito aplicável à hipótese, exercendo o poder de influir positivamente sobre o convencimento do juiz. Assim, trata-se de fase decisiva para a aferição da efetividade do contraditório e, para a defesa, "a única via possível de resistência, ao menos para questionar a validade ou a suficiência das provas carreadas aos autos pela acusação " (Eugênio Pacelli de Oliveira, Curso de Processo Penal, 2007, p. 536). É exatamente a exigência de um contraditório efetivo e equilibrado que "impõe que se analise, em certos casos, o próprio conteúdo das alegações finais oferecidas, sob pena de transformar a participação nessa fase em mera formalidade inócua, desprovida de qualquer aptidão de influenciar o convencimento do julgador "1. Devem, assim, ser afastados os arrazoados vazios, estereotipados ou que terminem por aderir à tese do adversário, os quais ofendem a própria razão de ser da defesa e que, por isso, equivalem à omissão. Assim sendo, por se tratar de norma constitucional de garantia, que visa não apenas ao benefício da parte, mas, em primeiro lugar, ao interesse público na condução do processo segundo as regras do devido processo legal, constitui a ausência de defesa nas alegações finais nulidade absoluta, não sendo necessário, por isso, a indagação acerca do prejuízo efetivo sofrido pelo réu. Nesse sentido é o escólio de Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho: "resulta daí que o ato processual praticado em infringência à norma ou o princípio constitucional de garantia, poderá ser juridicamente inexistente ou absolutamente nulo; não há espaços, nesse campo, para atos irregulares sem sanção, nem para nulidades relativas" (As Nulidades no Processo Penal, 2007, p. 27). A insuficiência de defesa técnica, portanto, pode ser equiparada à sua própria ausência, pois o princípio da ampla defesa vai além da participação no processo, impondo a realização efetiva desta participação, sob pena de nulidade2. Neste sentido já se manifestou o Supremo Tribunal Federal: 'Habeas corpus'. – Há, no caso, falta de defesa, tendo em vista a circunstância de que, nas alegações finais, o defensor do ora paciente assumiu, inequivocamente, o papel do acusador, pois, apesar de afinal pedir a absolvição do réu ou que se lhe impusesse a pena mínima, toda a sua argumentação foi no sentido de fornecer elementos para a sua condenação. – Acolhido esse fundamento, fica prejudicado o exame da outra alegação da impetração – a do vício na fixação da pena –, que pressupõe a validade da condenação. "Habeas Corpus" deferido em parte. (HC 73428/MS, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 28/06/1996). Em oportunidade mais recente, a Suprema Corte se manifestou favoravelmente à equiparação da eficiência de defesa à sua ausência nos casos em que o defensor se limita a pedir a condenação no mínimo legal, assim afirmando: 'Existem situações em que a defesa promovida pelo advogado demonstra tal maneira a sua desídia, falta de zelo, de iniciativa, de diligência, que o prejuízo, além de patente, se revela insuperável por influenciar direta e indubitavelmente o resultado da causa, acarretando, com isso, prejuízo ao réu. Nesses casos, é possível equiparar a referida deficiência à total ausência de defesa, a implicar a nulidade dos atos afetados por esse defeito e inclusive a nulidade do próprio feito" (excerto do voto do Min. Carlos Brito no HC 82.672- RJ, Rel. para o acórdão Min. Marco Aurélio, DJ de 01/12/2006). Corroborando esse posicionamento, assim afirma a jurisprudência desta Corte Superior: PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. NULIDADE. RÉU INDEFESO. I – No âmbito do processo penal há a necessidade de que se garanta ao réu o pleno exercício do seu direito de defesa, que deve ser efetivo, real, e não apenas pro forma. II – Resta caracterizada a falta de defesa do réu, e não apenas a sua deficiência, se o defensor, não obstante tenha apresentado defesa prévia e alegações finais, o fez apenas formalmente, assumindo postura praticamente contrária aos interesses do réu, não só ao deixar de sustentar a posição apresentada pelo próprio acusado no interrogatório, no
sentido da desclassificação para o delito do art. 16 da Lei 6.368/76, mas também ao postular a condenação, ainda que a pena mínima, por delito mais grave do que o admitido. Tudo isto, sem ao menos interpor apelação ao sobrevir condenação a pena superior ao mínimo legal. III – A concreta e objetiva inércia ou indiferença da defesa é de ser equiparada, conforme dicção da melhor doutrina, à sua inexistência (Precedentes). Writ concedido. (HC 16.620/MG, Rel. Min. Felix Fischer, Quinta
Turma, DJ de 12/11/2001)”.
De outro lado, em virtude do exposto, resta prejudicada a análise da alegada violação aos arts. 156 e 381 do Código de Processo Penal. De qualquer forma, aferir o dissenso entre as provas carreadas aos autos e a sentença condenatória demandaria o reexame da matéria fático-probatória contida nos autos, procedimento defeso na instância especial, a teor do verbete nº 7 da Súmula /STJ.
Ante o exposto, não conheço do recurso especial. Concedo, contudo, habeas
corpus de ofício para anular a ação penal (Processo 262/02) desde a apresentação das
alegações finais da defesa, inclusive.
É como voto.