HABEAS CORPUS. Prisão preventiva. requisitos legais. presunção de periculosidade pela probabilidade de reincidência. inadmissibilidade.
- A futurologia perigosista, reflexo da absorção do aparato teórico da Escola Positiva – que, desde muito, têm demonstrado seus efeitos nefastos: excessos punitivos de regimes políticos totalitários, estigmatização e marginalização de determinadas classes sociais (alvo do controle punitivo) – tem acarretado a proliferação de regras e técnicas vagas e ilegítimas de controle social no sistema punitivo, onde o sujeito – considerado como portador de uma perigosidade social da qual não pode subtrair-se – torna-se presa fácil ao aniquilante sistema de exclusão social.
- A ordem pública, requisito legal amplo, aberto e carente de sólidos critérios de constatação (fruto desta ideologia perigosista) – portanto antidemocrático –, facilmente enquadrável a qualquer situação, é aqui genérica e abstratamente invocada – mera repetição da lei –, já que nenhum dado fático, objetivo e concreto, há a sustentá-la. Fundamento prisional genérico, anti-garantista, insuficiente, portanto!
- A gravidade do delito, por si-só, também não sustenta o cárcere extemporâneo: ausente previsão constitucional e legal de prisão automática por qualquer espécie delitiva. Necessária, e sempre, a presença dos requisitos legais (apelação-crime 70006140693, j. em 12/03/2003).
- À unanimidade, concederam a ordem. Habeas Corpus Quinta Câmara Criminal Nº 70006140693 Porto Alegre Cristian Wasem Rosa impetrante; Felipe Espindola da Silva paciente E Juiza de Direito da 1ª VARA CrimINAL DO FORO regIONAL PetrÓpolis da ComARCA DE PoRTO ALEGRE coatora.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes da Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em conceder a ordem, determinando-se a expedição de alvará de soltura se por outro motivo não estiver o réu preso.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além do signatário, os Desembargadores Aramis Nassif e Luís Gonzaga da Silva Moura.
Porto Alegre, 23 de abril de 2003.
Relator.
RELATÓRIO
Conforme a inicial, o paciente encontra-se preso desde 17/02/2003, em virtude de decretação da prisão preventiva. Alega, invocando os princípios constitucionais da igualdade, da presunção de inocência e do devido processo legal que a prisão preventiva é medida de extrema excepcionalidade; acrescenta ainda que o paciente possui residência fixa e é primário. Salienta, outrossim, a nulidade do auto de prisão em flagrante (ausência de defensor no ato). Assim, entendendo estarem ausentes os pressupostos autorizadores da medida odiosa – deficiente, portanto, a caracterização do fumus boni iuris – requer a concessão da ordem, com a expedição liminar de alvará de soltura em favor do paciente.
O pedido liminar foi indeferido, com solicitação informações (fl. 22).
Vieram estas (fls. 24/41).
Nesta instância, em parecer oral, a Procuradoria de Justiça, pelo Dr. Edgar Luiz de Magalhães Tweedie, opina pela denegação da ordem.
É o relatório.
VOTO
Amilton Bueno de Carvalho (Relator) – Vinga a ordem. A prisão preventiva – extemporânea e temerária – só é admissível nos casos extremos: preponderância do princípio da presunção de inocência. E neles, os casos limítrofes, a decisão segregativa exige esteio em sérios, claros e fortes fundamentos – tal exigência nada mais é do que a aplicação da regra do art. 93, IX da CF/88: necessidade de motivação das decisões judiciais – garantia constitucional inabalável.
Na espécie traz-se à berlinda duas decisões judiciais:
Na primeira, tem-se como fundamento do decreto prisional a necessidade de garantia da ordem pública ancorada, exclusivamente, na futura probabilidade de cometimento de novos delitos. Ora, a futurologia perigosista é prática oriunda de ideologias intolerantes que, desde muito, têm demonstrado seus efeitos nefastos: excessos punitivos de regimes políticos totalitários, estigmatização e marginalização de determinadas classes sociais (alvo do controle punitivo)... .
O instituto da periculosidade, reflexo da absorção do aparato teórico da Escola Positiva, fundado em bases ocultas de manutenção de determinadas estruturas de poder, tem acarretado a proliferação de regras e técnicas vagas e ilegítimas de controle social no sistema punitivo, onde o sujeito – considerado como portador de uma perigosidade social da qual não pode subtrair-se – torna-se presa fácil ao aniquilante sistema de exclusão social.
Zaffaroni, ao censurar o prognóstico de perigosidade nominando-o de ”perigosómetro” considera que “una de las pretensiones más ambiciosas de esta criminologia etiológica individual equívoca fue la de hacer realidad el viejo sueño positivista: medir la peligrosidad”. Segundo o autor a medição se dá partir da análise da reincidência, quando se “construye uma tabla, se suman las causas presentes y ausentes en cada caso futuro y se obtiene el porcentaje, o bien se asigna un número de puntos a cada ‘causa’ y se suman los puntos aunque hubo algunos más complicados” (Zaffaroni, Eugenio Raul. “Criminología: Aproximación desde un margen”, p. 244).
Vê-se que desde a definição de temibilitá, delineada por Garofalo, não houve avanços significativos no sentido de fixar um conceito ao instituto podendo – sinteticamente, a partir das definições já lhe conferidas por diversos autores – ser resumido nos seguintes termos: tendência ou “probabilidade” de que um indivíduo cometa ou torne a cometer um crime.
A recepção deste pressuposto nos sistemas punitivos latino-americanos levou pobres, reincidentes, alcoólatras, mendigos, vagabundos e deficientes mentais a serem o alvo histórico das medidas preventivas de controle social. Tosca Hernandes A. em análise crítica, desvelando o a ideologia sustentadora do conceito de perigosidade social, na Venezuela das décadas de 30 a 70, salienta que
“la función ideológica de la noción peligrosidad social es la de justificar los nuevos mecanismos de control social, ocultando lo represivo en ellos, para así extenderlos a conductas consideradas como “no delictivas” y a sujetos sentenciados por delitos. Tipo y número de conductas (o estados orgánicos) abiertas a lo necesario ideológicamente de considerar como ‘anormalidad individual’, para la justificación y preservación de un sistema social histórico determinado. (A Tosca Hernandez. “La Ideologización del Delito y de la Pena”. Caracas: Imprensa Universitária, 1997, p. 32)”
No caso em tela, observa-se a sobrevivência desta velha e malfadada periculosidade social que – inobstante o decorrer dos tempos e a evolução do Direito – ainda se presta, a justificar sistemas e práticas punitivas severas e anti-seculares de neutralização de toda a ordem de insatisfeitos e inadequados aos padrões sociais do poder dominante.
A ordem pública, requisito legal amplo, aberto e carente de sólidos critérios de constatação (fruto desta ideologia perigosista) – portanto antidemocrático –, facilmente enquadrável a qualquer situação, é aqui genérica e abstratamente invocada – mera repetição da lei –, já que nenhum dado fático, objetivo e concreto, há a sustentá-la. No caso, nada indica que o crime tenha abalado a sociedade de Porto Alegre.
Assim, o delito de roubo – crime como tantos outros previstos no Código Penal – por si só, não alcança abalo à ordem. Aliás, a indagação lateja: o que é abalar à ordem pública?
Decreto mal fundamentado, genérico, insuficiente, anti-garantista, pois!
Mais. A gravidade do delito – fundamento da segunda decisão (fl. 41) –, por si-só, não autoriza a medida odiosa. Eis a jurisprudência:
“...III – Prisão preventiva: à falta da demonstração em concreto do periculum libertatis do acusado, nem a gravidade abstrata do crime imputado, ainda que qualificado de hediondo, nem a reprovabilidade do fato, nem o conseqüente clamor público constituem motivos idôneos à prisão preventiva: traduzem sim mal disfarçada nostalgia da extinta prisão preventiva obrigatória.” (Habeas corpus n.º 79.200 – BA -, Primeira Turma, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, in Revista Trimestral de Jurisprudência, S.T.F., vol. 172, pág. 184, abril de 2000) – Grifei.
Em suma: fundamentação deficiente e réu primário com direito, portanto, a responder processo em liberdade.
Diante do exposto, concede-se a ordem. Expeça-se alvará de soltura se por outro motivo não estiver preso.
Des. Aramis Nassif – De acordo.
Des. Luís Gonzaga da Silva Moura – De acordo.