HC 96744 / RJ - RIO DE JANEIRO
HABEAS CORPUS
Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO
Julgamento: 03/12/2008
Publicação
DJe-237 DIVULG 12/12/2008 PUBLIC 15/12/2008
Partes
PACTE.(S): JOSÉ RENATO GRANADO FERREIRA
IMPTE.(S): CASTELLAR MODESTO GUIMARÃES FILHO E OUTRO(A/S)
COATOR(A/S)(ES): RELATORA DO HABEAS CORPUS Nº 96851 DO SUPERIOR
TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Decisão
HABEAS CORPUS – IMPETRAÇÕES SUCESSIVAS – LIBERDADE DE IR E VIR – PRISÃO PREVENTIVA – FUNDAMENTOS – INSUBSISTÊNCIA – RELEVÂNCIA DEMONSTRADA.
1. Eis as informações prestadas pela Assessoria:
Esta impetração tem por objeto a decisão do Superior Tribunal de Justiça, mediante a qual foi indeferida liminarmente a petição inicial de Habeas Corpus – nº 96.851. Neste último, buscava-se infirmar ato do Tribunal Regional Federal que, ao implicar o não-acolhimento do pedido de liminar, manteve a ordem de prisão preventiva decretada contra o paciente em sede de medida cautelar de busca e apreensão em curso na 6ª Vara Federal Criminal, onde tramita a Ação Penal nº 2007.51.01.812.262-4, relativa à
denominada “Operação Furacão V”.
Os impetrantes revelam ter o Ministério Público Federal, valendo-se do Inquérito nº 2.424/RJ, oferecido denúncia contra o paciente nas Ações Penais nos 2007.51.01.802.985-5, 2007.51.01.804.865-5, 2007.51.01.806.354-1 e 2007.51.01.807.604-3, alusivas,respectivamente, às Operações Furacão I a IV, todas em curso na Justiça Federal da Circunscrição Judiciária do Estado do Rio de Janeiro. Os decretos de prisão preventiva expedidos nessas ações foram cassados ante liminares deferidas por Vossa Excelência nos Habeas Corpus nos 91.723/RJ, 92.098/RJ, 94.411/RJ e 92.423/RJ.
Segundo asseveram, na última ação penal ajuizada – de nº 2007.51.01.812.262-4, atinente à “Operação Furacão V” -, o Ministério Público Federal entendeu reunir parte dos dados colhidos no Inquérito nº 2.424 ao resultado do procedimento de Busca e Apreensão nº 2006.51.01.532.730-9. Afirmam imputarem-se ao paciente os delitos de quadrilha e contrabando – os quais também seriam objeto da ação penal decorrente da Operação Furacão I – e crime contra a economia popular (Lei nº 1.521, artigo 2º,inciso IX). Aduzem, por isso, que, afora a derradeira acusação, o Ministério Público estaria a repetir demanda penal em curso. No entanto, mesmo constatada a identidade de ações penais, sendo nítida a conexão dos fatos, o Juízo da 6ª Vara Federal recebeu a denúncia e decretou a prisão preventiva.
Recordam ter sido assegurada a liberdade do paciente mediante decisão proferida por Vossa Excelência no Habeas Corpus nº 93.364/RJ, tendo como paciente Aniz Abrahão David. A Primeira Turma do Supremo, porém, no dia 4 de novembro deste ano, não conheceu do pedido formulado na impetração, revogando a liminar então concedida. Salientam que, mesmo após um ano de liberdade sem acarretar qualquer prejuízo à instrução processual e à aplicação da lei penal, nem risco à ordem pública ou econômica, o paciente encontrar-se-ia na iminência de sofrer constrangimento ilegal no direito de locomoção diante de nova ordem de prisão contra si determinada. Consoante asseveram, o decreto está fundamentado genericamente, não atentando o Juízo para a necessidade de observância dos requisitos previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal. Reputam inadmissíveis a mera presunção de que, solto, o paciente voltaria a delinqüir e a alegação de vir “o poderio de infiltração do bando nas instituições públicas” a influir na investigação. A tanto também não serviriam o eventual clamor público e a gravidade dos fatos imputados.
Afirmam a existência de similitude do decreto de prisão preventiva com as ordens de prisão anteriores, as quais Vossa Excelência, superando o óbice do Verbete nº 691 da Súmula do Supremo, concedeu liminar. Acentuam a desnecessidade da custódia processual, dando relevo ao fato de o paciente estar em risco de vir a ser preso com base em ato que não estaria a preencher os requisitos do artigo 312 do Código de Processo Penal, razão por que pedem a concessão de medida acauteladora, revogando-se o decreto de prisão cautelar. No mérito, pleiteiam a ratificação da decisão (folha 15).
Registro que o objeto do habeas está circunscrito à ordem de prisão preventiva formalizada na Ação Penal nº 2007.51.01.812.262-4, relativa à denominada “Operação Furacão V” (folhas 3 e 42), não guardando correlação com a controvérsia submetida à apreciação do Supremo no Habeas Corpus nº 93.364/RJ, referente à Ação Penal nº 2007.51.01.802.985-5 (Operação Furacão I).
O Superior Tribunal de Justiça indeferiu liminarmente a petição inicial de habeas corpus, considerando o óbice revelado pelo Verbete nº 691 da Súmula do Supremo. Conforme documentação juntada às folhas 219 e 231, o Tribunal Regional Federal da 2ª
Região não concedeu a ordem.
2. Reitero a leitura que faço do Verbete nº 691 da Súmula desta Corte, no sentido de compatibilizá-lo com a Constituição Federal. Ressalto que, a esta altura, há o indeferimento da ordem no Tribunal Regional Federal da 2ª Região e o prejuízo do habeas formalizado no Superior Tribunal de Justiça, não se podendo potencializar a forma e exigir a impetração de novo habeas para exame por esta Corte:
O habeas corpus, de envergadura constitucional, não sofre qualquer peia. Desafia-o quadro a revelar constrangimento ilegal à liberdade de ir e vir do cidadão. Na pirâmide das normas jurídicas, situa-se a Carta Federal e assim há de ser observada.
Conforme tenho proclamado, o Verbete nº 691 da Súmula desta Corte não pode ser levado às últimas conseqüências. Nele está contemplada implicitamente a possibilidade, em situação excepcional, de se admitir a impetração contra ato que haja resultado no indeferimento de medida acauteladora em idêntica medida – Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 84.014-1/MG, por mim relatado na Primeira Turma e cujo acórdão foi publicado no Diário da Justiça de 25 de junho de 2004. É esse o enfoque que torna o citado verbete compatível com o Diploma Maior, não cabendo extremar o que nele se contém, a ponto de se obstaculizar o próprio acesso ao Judiciário, a órgão que se mostre, dados os patamares do Judiciário, em situação superior e passível de ser alcançado na seqüência da prática de atos judiciais para a preservação de certo direito.
Repetem-se as prisões considerados os processos alusivos à Operação Furacão, já desdobrada em II, III, IV e V. Em geral, mediante longas decisões, como a ora apreciada, tem-se, como regra, a decretação da preventiva ante atuações visando a jogos
ilícitos. Confiram à folha 147 à 209.
Conforme já ressaltei em situações semelhantes, presentes os processos da 6ª Vara Criminal Federal do Rio de Janeiro, há de apurar-se para, formada a culpa, submeter o condenado, ou condenados, à prisão, depois de imposição de pena. A preventiva, mitigando-se o princípio constitucional da não-culpabilidade, deve ser reservada a casos que se enquadrem no figurino legal, o artigo 312 do Código de Processo Penal, revelando exceções.
Na espécie, decretou-se a preventiva a partir de indícios quanto à autoria e à materialidade de crimes, da presunção de que o paciente, em liberdade, continuaria a delinqüir, citando-se atividade exercida há cerca de dez anos. Até a extensão do decreto está a sinalizar a insubsistência da custódia. A ordem pública foi mencionada a partir de fatos pretéritos e da suposição da continuidade das práticas envolvidas no processo. Então, presumiu-se o excepcional – que, mesmo diante da magnitude da operação, da persecução criminal resultante de diversas imputações, o paciente viria a implementar outros atos glosados penalmente, olvidando a atuação das autoridades policiais no tocante ao fechamento das casas destinadas a jogos de azar.
Sob o ângulo da instrução penal, nada se disse de concreto no sentido de haver o paciente tumultuado a tramitação do processo, andamento próprio da ação penal. A Colega em substituição à proficiente Juíza Dra. Ana Paula Vieira de Carvalho, na 6ª Vara Federal Criminal, reportou-se ao que consignado relativamente à Ação Penal nº 2007.5101.807604-3, na qual implementada a preventiva de vários denunciados. Mas as premissas do pronunciamento, considerados os trechos transcritos, não servem de base para chegar-se à exceção, prendendo-se antecipadamente. Valho-me do que, quanto a esse decreto, tive a oportunidade de registrar no Habeas Corpus nº 92.423-9/RJ:
Sob o ângulo da prisão preventiva, reconheço que as decisões emanadas da 6ª Vara Federal Criminal – Seção Judiciária do Estado do Rio de Janeiro - são redigidas com insuplantável cuidado. A pena da titular é robusta e busca revelar o convencimento formado, não raras vezes, com abordagem da Jurisprudência, como ocorre neste caso. A peça elaborada, e que se diz a merecer glosa, a um só tempo a retratar o recebimento da denúncia considerados os tipos da Lei 9.613/98, previstos no Capítulo I – Dos Crimes de Lavagem ou Ocultação de Bens, Direitos e Valores -, e a decretação da preventiva dos denunciados, a saber - Ailton Jorge Guimarães, Aniz Abrahão David, Antonio Petrus Kalil, José Renato Granado Ferreira, Júlio César Guimarães Sobreira, Paulo Roberto Ferreira Lino, Marcelo Kalil Petrus, Nagib Teixeira Suaid, João Oliveira de Farias, Luciano Andrade do Nascimento, Belmiro Martins Ferreira, Laurentino Freire dos Santos - o paciente -, Marcos Antonio dos Santos Bretas, Licínio Soares Bastos e Marcos Antonio Machado Romeiro -, é longa, longuíssima, contando com 145 folhas. A extensão, no entanto, não afasta a apreciação do conteúdo respectivo, sob o prisma da prisão preventiva, com a ordem jurídica. Há de ter-se presente o enquadramento, ou não, do ato no permissivo legal, no artigo 312 do Código de Processo Penal, notando-se que, na decisão, também ligado à grande operação denominada Furacão, procedeu-se a exame visando individualização.
É sabido que a materialidade dos fatos narrados na denúncia, e até então não comprovados em termos de definir-se a culpabilidade, e os indícios de autoria são elementos para chegar-se à prisão preventiva, mas se mostram insuficientes, por si sós, ao respectivo implemento, presentes outros requisitos. Diz-se da existência de “verdadeiro estado paralelo com a criação de tribunais julgadores dos conflitos referentes à atividade, onde os mais fortes e poderosos assumem a função de juízes de seus semelhantes, processando feitos, colhendo provas e, ao final julgando, sabe-se lá para a imposição de qual pena” (folha 65 do apenso 2). Eis um dado neutro considerada a preventiva e até mesmo os parâmetros da denúncia.
A afirmação de que, a partir de tal organização, ter-se-ia a existência de quadrilha também não vinga. Mais uma vez, volto aos limites da denúncia, não bastasse a circunstância de o crime do artigo 288 não gerar a prisão automática. O mesmo enfoque merece a assertiva segundo a qual somente os ingênuos acreditam ser suficiente o oferecimento da denúncia para a interrupção da atividade criminosa – ainda a ser provada no processo em que decretada a prisão preventiva. Não há a menor dúvida de que a cessação em definitivo provém do enclausuramento dos envolvidos. Entrementes, a ordem natural das coisas direciona no sentido de aguardar-se a formação da culpa, a prova das imputações pelo Ministério Público, com a imutabilidade, no campo recursal, do título condenatório. É isso que decorre da Constituição Federal, não bastasse ter-se presente que a atuação diligente da polícia e a abertura de processo-crime apontam para a suspensão de atos, ante o direcionamento dos holofotes.
A existência de outra operação – denominada Rescaldo - também não serve de respaldo à prisão preventiva, pouco importando se tenha proporcionado “encontros amorosos dentro da viatura policial” para lograr-se tratamento privilegiado. Desinfluente, do
mesmo modo, a existência de chefia no grupo de denunciados e o fato de aqueles que a exercem serem reconhecidos “como contraventores e quadrilheiros pelo Judiciário no início da década de 90”.
Quanto à reiteração delitiva, observem a imputação havida com a denúncia. Diz respeito à lavagem de dinheiro e ocultação de bens. Os indícios de “funcionamento de organização criminosa” também não são suficientes a assentar-se a periculosidade, presente a presunção de que, surpreendida a atividade, a tendência é a cessação.
Excluo, como base para a preventiva, ainda, a circunstância de filho de um dos envolvidos haver tentado obter, no estabelecimento policial em que custodiado, tratamento mais favorável. A atuação do Estado, considerada a custódia, há de levar em conta a preservação da integridade física e moral do preso, o que sabidamente não ocorre em termos de realidade penitenciária.
O grande número de volumes resultante da investigação é mais um elemento que não justifica a prisão preventiva. Não são as muitas folhas confeccionadas que indicam, por si mesmas, a periculosidade.
Após abordagem geral – da folha 1 a folha 55 -, segue-se o exame da situação de cada um dos denunciados. Dificulta, é certo, perquirir-se a procedência, ou não, das custódias, mas não afastam a análise, em que pese a avalanche de processos inviabilizando, em termos de celeridade, a atuação do Supremo, onde parece que casos e mais casos vêm a desaguar, quando revelado o insucesso na busca da preservação da liberdade e da máxima segundo a qual é preciso antes apurar a culpa para impor-se verdadeira pena de perda da liberdade, e não implementar esta última para depois serem elucidados os fatos. O que articulado diz respeito a fatos que deverão ser objeto de prova pelo Ministério Público, voltando-se aos institutos da autoria e materialidade do crime. É isso que ocorre relativamente ao paciente, valendo notar que até mesmo um gráfico consta do ato que implicou a determinação da preventiva – folha 105 da peça. Mais uma vez, tem-se a potencialização do olhar voltado a alcançar-se nova quadra, o combate à delinqüência. Entretanto, tudo há de ocorrer consideradas as balizas legais e constitucionais. Prenda-se, puna-se, mas a partir da culpa formada. Esta é a regra consubstanciando a prisão preventiva exceção. A inversão de valores não contribui para o aprimoramento da ordem jurídica, implicando, isto sim, à mercê de generalização, retrocesso. Sem deixar de louvar o esforço desenvolvido quer pela Polícia Federal, quer pelo Ministério Público e também pela colega magistrada – Dra. Ana Paula Vieira de Carvalho, cujo ofício judicante acompanho com admiração, tenho como insubsistente para a prisão preventiva do paciente o que lançado na peça examinada e que está no apenso 2. Vejo a situação como a reveler excepcionalidade a ditar o afastamento do óbice do Verbete nº 691 da Súmula do Supremo, mormente quando se chega ao último patamar do Judiciário, não havendo além dele, a quem, com sucesso, recorrer.
Em síntese, há de aguardar-se a formação da culpa para, posteriormente, chegar-se à expedição de mandados de prisão visando à execução do título executivo condenatório.
3. Defiro a liminar pleiteada, determinando a expedição de salvo-conduto ou, se já implementada a custódia, de alvará de soltura considerada a preventiva formalizada contra o paciente no Processo nº 2007.5101.812262-4, da 6ª Vara Criminal Federal do Rio de Janeiro. Cumpram esta liminar com as cautelas pertinentes, vale dizer, caso o paciente não esteja preso por motivo diverso do retratado na citada preventiva, devendo ser alertado da necessidade de permanecer no distrito da culpa, atendendo aos chamamentos judiciais, em contribuição com o Judiciário na defesa dos próprios interesses. Sendo idêntica, ante a unicidade do título alusivo à preventiva, a situação dos co-réus Belmiro Martins Ferreira Junior, Paulo Roberto Ferreira Lino, Arturo Roberto Lemseyan, Aílton Guimarães Jorge, Júlio Cesar Guimarães Sobreira, Aniz Abrahão David, Nagib Teixeira Sauid, Antônio Petrus Kalil, Marcelo Kalil Petrus, Licínio Soares Bastos, Laurentino Freire dos Santos, José Luiz da Costa Rebello, Jaime Garcia Dias, Evandro da Fonseca, Sérgio Luzio Marques de Araújo, José Grille Sanchino e Francisco Recarey Vilarante, a eles estendo esta cautelar.
4. Colham o parecer da Procuradoria Geral da República.
5. Publiquem.
Brasília, 3 de dezembro de 2008.
Ministro MARCO AURÉLIO
Relator