sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Artigo - "Transporte de Presos: e quando o Estado viola o Código?"

Caros,
abaixo, segue artigo da amiga e professora Renata Almeida da Costa. A leitura crítica realizada pela estudiosa aponta os (des)respeitos ao Código de Trânsito Brasileiro no que tange ao transporte de presos.
Boa leitura,

Prof. Matzenbacher



TRANSPORTE DE PRESOS: E QUANDO O ESTADO VIOLA O CÓDIGO?

* Por Renata Almeida da Costa

Assisti ao ferrenho embate jurídico e político ocorrido no Brasil, por ocasião da edição de uma norma que proibiria o uso irrestrito de algemas. O princípio invocado era o da dignidade da pessoa humana e o da presunção da inocência. À opinião pública o tema era afeito porque os meios de comunicação, diuturnamente, divulgavam (e divulgam) imagens de pessoas – personalidades ou não – entrando ou saindo de delegacias de polícia com as mãos centradas à frente do corpo, não raras às vezes encobertas a fim de que a imagem não revelasse o que todos imaginavam: o uso de ditas algemas. Esse atuar dos agentes do Estado incomodou alguns. Talvez por conta de quem tenha sido algemado.

Resolvido o imbróglio, finalmente a razão imperou e a norma entrou em vigor. Todavia, poucos no país questionam ou se insurgem contra uma ação tão ou muito mais grave, mais violenta e mais ilegal: a condução de pessoas presas (condenadas ou não, mas também não importa) no porta-malas dos veículos estatais. Algemados, jogados de lado, sem assento, sem cinto de segurança, são conduzidos, espetacularmente diante dos olhos públicos, famosos ou anônimos.

O que mais estarrece, para além do simbólico da feitura da prisão (naquilo que Jacinto Coutinho refere não bastar o uso da força, ser preciso o escárnio para o gozo da massa) e de todos os seus efeitos estigmatizantes, é a violação explícita realizada pelo Estado de seus próprios princípios normativos, insculpidos na Constituição Federal e no próprio Código de Trânsito brasileiro.

No documento de 1997, o Estado se preocupou em estabelecer os objetivos básicos do Sistema Nacional do Trânsito. Ali, no artigo 6º, está dito que as diretrizes da Política Nacional do Trânsito devem ter em vista a segurança, a fluidez, o conforto, a defesa ambiental e a educação das atividades para o trânsito. E, antes mesmo de ser objetivo básico, a segurança é apontada como disposição preliminar. O parágrafo 2º do artigo 1º assim determina: O trânsito, em condições seguras é um direito de todos (...).

Se é assim, o emprego de viaturas para transporte de pessoas custodiadas pelo Estado sem a observância desse fundamento significa o quê? A expressão “todos” foi mal empregada? Ou será que, pelos costumes e pelos sentimentos de vingança outorgamos ao Estado o direito de descumprir as suas normas, ou de relativizá-las dependendo de quem é o seu destinatário? Será que o Estado abandonou as máximas latinas, sinal de erudição do ordenamento jurídico racional, para assumir uma máxima popular simplória (“Faça o que eu digo, não faça o que eu faço!”)?

A despeito da vigência da Constituição Federal (local em que princípios como dignidade da pessoa humana e princípio da inocência, e os direitos à vida e à integridade física ganharam status de imutabilidade e de garantia de um contra a violência de todos.), as viaturas ao estilo “camburão” seguiram sendo utilizadas pelos órgãos da segurança pública. Possivelmente alicerçado nas situações regulamentadas pelo CONTRAN, o descumprimento do artigo 65 do CTB (É obrigatório o uso de cinto de segurança para condutor e passageiros em todas as vias do território nacional) adquiriu aparência de legalidade.

Tudo porque o artigo 2º da Resolução nº 14, de 06/02/1998, estabelece que não será exigido cinto de segurança nos veículos para passageiros, de natureza coletiva, ônibus ou microônibus em que se possa viajar em pé, e nos “veículos bélicos” (leia-se, de guerra, do Exército, de uso das forças armadas).

Por outro lado, é risível (não fosse trágico) que a lei federal brasileira (de número 8.653/93) destinada a regulamentar o transporte de presos no Brasil (e que, jocosamente, dá outras providências), tenha apenas quatro dispositivos. O primeiro afirma que “É proibido o transporte de presos em compartimento de proporções reduzidas, com ventilação deficiente ou ausência de luminosidade”. O segundo foi vetado. O terceiro determinou a entrada em vigor na data de sua publicação. O quarto revogou as disposições em contrário.

O riso se torna uma gargalhada estupefata porque a malfadada norma específica ainda está em vigor. Foi publicada após a Constituição Federal e não se adequou àquela carta de Princípios. É como se proporções medianas, com furos na lataria e vidros que deixem passar a luz (e a imagem de quem está dentro, muito importante para o escárnio) fossem suficientes para assegurar a dignidade e a segurança da pessoa transportada.

Ao mesmo tempo, o Código de Trânsito Brasileiro não se preocupou em disciplinar a matéria. Ao contrário. Estabeleceu uma série de limitações à condução dos veículos automotores, previu outra série de sanções (especialmente as de caráter pecuniário destinatárias ao particular) e delegou ao CONTRAN a responsabilidade de dizer o que ali não foi dito. Esse, a seu turno, seguiu estabelecendo uma série de outros requisitos de proteção aos ocupantes dos veículos. Mas nenhum vedou, explicitamente, o transporte de seres humanos nos porta-malas dos veículos oficiais.

A atenção na criação de requisitos de segurança foi destinada à proteção de outros bens. Veja-se, por exemplo, a complexa Resolução de número 264 que define os requisitos de segurança para o transporte de blocos de rochas ornamentais. Sim, para isso, há requisitos explícitos.

De tudo, ficam mais essa desconsideração do Estado brasileiro com a pessoa custodiada e o inequívoco desinteresse do enfrentamento da matéria (há notícias de que o Ministro Tarso Genro tenha requerido à Polícia Federal a substituição dos veículos equipados com as ‘gaiolas’. Segundo divulgado na mídia, o requerimento teria sido feito em 2007. Até agora, as imagens jornalísticas revelam que nada mudou.)

Enquanto isso, críticas são dirigidas a quem questiona os meios operacionais estatais destinados à contenção dos “perigosos” (pesquisadores das ciências criminais, criminólogos e sociólogos são costumeiramente ignorados por alicerçarem as suas convicções, quanto às motivações para as práticas delituosas, em fatores biológicos, psicológicos e/ou sociais). O foco da discussão se perde e o espetáculo punitivo (inclusive antecipado, quando o preso transportado é a pessoa que ainda não foi condenada) é celebrado. Empenham-se na manifestação rasteira de intolerância e, assim, justificam a violação da lei. É como se, em um dualismo simplista e vulgar, pusesse em marcha dois direitos (do amigo e do inimigo).

Todavia, a única intolerância tolerável no Estado de Direito que escolhemos, deve ser consenso entre repressivistas e críticos: quando o autor das ilegalidades é o próprio Estado. Há que imperar a força dos princípios constitucionais. Há que se exigir também do Estado o cumprimento de suas normas. Tudo sob pena de legitimarmos um mesmo algoz.


Publicado originalmente no Jornal "Estado de Direito", edição de julho/agosto de 2009.