Caros,
segue um texto magistral do amigo Denival (magistrado goiano), sobre a "retórica de melhor doutrina". Vale a pena a leitura e a discussão de um tema que esvazia o conteúdo do(s) argumento(s). Corroborando as linhas, penso que a utilização da "pior", opa, quer dizer da "melhor doutrina" é o discurso do vazio, da prática autoritária e acrítica na essência que blinda e protege a (falta de) visão, tornando-se reducionista e afastando a humanidade daqueles que estão sendo julgados.
Portanto, além de ridículo, ainda alimenta àquilo que o Lenio chama de "turisprudência"...
Boa leitura!Prof. Matzenbacher
A RETÓRICA DA MELHOR DOUTRINA. Isso é tão ridículo quanto autoritário, a ponto de representar o que se tem de pior num regime democrático.
O contumaz usuário do mais puro “juridiquês” (linguagem supostamente rebuscada, empolada, que não diz precisamente o direito. Puro enfado para falsos juristas que se encantam com o discurso vazio, autoritário e tradicionalista, sem mínima adequação à realidade social), sempre se enforca nas suas próprias diabruras, enfiando os pés pelas mãos na convicção de que está se dando bem.
Trata-se de uma prática ainda usual por alguns profissionais do direito, que imaginam seja esta linguagem diferenciada (com seus equívocos e vacilos) ferramenta necessária de trabalho. Tem os cultores que disseminam a praga, arraigados às velhas tradições e sob estas falsas erudições sentem-se condicionados a propagarem ideias.
Aqueles que acompanham tal escrutínio, principalmente no exercício da atividade forense, valem-se destes sofistas para resumir qualquer debate, sobretudo quando acoados em seus estreitos limites. Neste caso, a solução é simples. Basta rememorar um velho autor, também com suas prosopopéias e tudo se resolve, afinal, quem ousara discutir diante: … da melhor doutrina que trata do assunto … ; … da doutrina de escol que reporta ao assunto da seguinte forma…; … do tema o qual a melhor doutrina já sentenciou….
Isto é, não existe mais possibilidade de dissenso porque a tal doutrina especial, suprema, transformou o assunto em ponto irretorquível, não se podendo mais questioná-lo.
Este discurso se especializou em esvaziar o debate. Não há mais nenhuma possibilidade de manifestação depois que o melhor se expõe. É como se ficasse na retaguarda, esperando a solução do problema. Somente em último caso é que é convocado para dar o tiro de misericórdia. Não existe chance alguma para quem pretende enfrentá-lo, e geralmente é lançado na bacia das almas, quando os recônditos valores se veem acuados frente a uma nova visão sobre o assunto, para o qual não querem ceder (porque seus preconceitos, seus valores morais, sua falsa sabedoria e tantas outras vicissitudes não permitem ao menos a recepção de novas ideias).
O interessante é que a definição do melhor está na tibieza de quem a utiliza, pela ausência de uma posição crítica e, sobretudo, falta de respeito à diversidade. Aquilo que é repetido como a melhor doutrina pelo usuário, é apenas seu ponto de vista ou de alguns – às vezes, nem isso, mas apenas a lei do menor esforço, porque esta afirmação evita qualquer sacrifício exegético, afinal já está pensado – e que pode perfeitamente parecer uma lastima aos olhos de outros, antipáticos àquela alternativa doutrinária.
Só é possível a ideia de um posicionamento melhor, sem a possiblidade de discussão e debate, num regime autoritário, onde não há expressão legítima do pluralismo político e democrático.
E este autoritarismo não se restringe ao termo “melhor”, mas ao erro terrível quanto à referência “doutrina”. A expressão começa com este equívoco originário, porque não existem doutrinas jurídicas, mas doutrina jurídica (singular). Assim como existe uma doutrina cristão com vertentes distintas conforme a concepção de cada segmento do cristianismo: católico, evangélico, kardecista, etc. Doutrina é o conjunto de ideias que forma um ramo do conhecimento ou de expressões sobre determinada área de conhecimento.
No caso das ciências jurídicas, assim como em diversos outros ramos do saber, justamente por não dispor de um método matemático e exato para suas aferições e resultados, existem entendimentos diversificados, conforme a postura daquele que emite suas opiniões e interpretações sobre o fato jurídico. Nem por isso existem diversas doutrinas. O que ocorre neste caso são posições de doutrinadores que opinam diversamente sobre um mesmo fato e que está longe, portanto, de representar “a doutrina jurídica”.
Este é o primeiro passo para desmascaramento deste pedantismo linguístico, e que se revela um verdadeiro sofisma.
O segundo ponto a ser destacado é a autoritarismo de quem se vale deste argumento para finalizar um entendimento ou para dar números finais à discussão. Não existe, é certo, neutralidade de conhecimento, principalmente quando diante da possibilidade de argumentação tendente a discorrer deste ou daquele modo sobre o mesmo objeto. Toda possibilidade de escolha envolve critérios específicos e que reflete o animus do interlocutor. Nunca será um processo neutro, porque ao fim significam as visões do interlocutor, ainda que vendo com olhos alheios. A utilização da expressão melhor doutrina, portanto, é sempre dotada de arrogância, com menosprezo a qualquer outra forma de pensar, decidir, e com a desqualificação de posições contrárias.
Para o urubu, a melhor rês é a perrengue, à beira da morte. Moscas adoram fezes e vermes se proliferam nas entranhas intestinais de outros animais. O melhor depende dos interesses daqueles que o anuncia. Tudo depende da perspectiva do interlocutor.
Mas a questão do melhor passou a ser de tal modo relativizada e banalizada que não é incomum, por exemplo, ao se dar notícia da morte de um conhecido, que alguém diga que o morto partiu para uma melhor. Como se sabe? Afinal, o comunicante já esteve lá? Porque não ficou? Ou, se está tão convicto de que a condição de defunto é melhor, porque não aproveitou o bonde? Veja que o melhor, neste caso, é apenas a constatação do imponderável e, embora seja natural temer o desconhecido, “é melhor” apostar que será melhor, assim as pessoas conseguem amenizar suas aflições com a perda do falecido e com o próprio futuro inevitável.
Todo ponto de vista é a vista de um ponto, já o disse Leonardo Boff. O olhar sobre determinada perspectiva é apenas um olhar. Nem todo mundo pode ver o eclipse solar a cada acontecimento e ainda assim ao mesmo tempo. Dependerá do ponto em que esteja na face da terra.
Melhor é, assim, somente um ponto de vista.
Ainda bem que existem diferenças e pontos de vistas distintos. Imaginem quanta chatice se tivéssemos que conviver com a mesmice, com a impossibilidade de novas reflexões, porque tudo já estaria dito e atingido pelo imutabilidade? O pluralismo político decorre desta imersão na diversidade, no respeito às diferenças e no convívio entre seres desiguais (não em direitos).
O conhecimento jurídico não é uma ciência exata, embora até mesmo nas ciências exatas se é possível divergir. As relações humanas são múltiplas, sofrendo constantes alterações, modificações e evoluções, de modo que não se pode estagnar um raciocínio, sobretudo jurídico, sobre determinado tema e, a par de enuncia-lo como fruto de “uma melhor doutrina”, impedir novas digressões. Assim, o conhecimento doutrinário expandido por alguém (ou alguns), por mais que seguido e copiado por outros tantos, nunca pode ser classificado como a melhor doutrina.
Nesta ordem de ideias, todo fato jurídico é multifacetado, como um caleidoscópio que se altera a cada semicírculo. O intérprete é apenas um visionário que se situa em determinado ponto para análise do caso concreto, e não aquele que dita ensinamentos doutrinários, abstratamente, para situações eventuais e futuras. Até mesmo a legislação é um olhar hipotético e eventual sobre determinado fato, cabendo sua adequação a cada necessidade de seu uso.
O exercício hermenêutico exige do intérprete esta acomodação do fato concreto com a norma posta e com as demais fontes do direito, conforme seu ponto de vista. Podemos e devemos nesta tarefa invocar um ou outro entendimento, copilar jurisprudências, fazer referências a posições doutrinárias, que entendamos ser adequadas ao fato. Conquanto não podemos jamais ter a arrogância de afirmar que esta forma de ver as coisas “é a melhor” delas. Fosse assim, não poderia haver o dissenso e não se falaria em duplo grau de jurisdição.
Um dos princípios básicos do Estado de Democrático de Direito, como enaltecido no texto constitucional, é a prevalência do pluralismo político (art. 1º, IV, CF) ou a concepção do direito à diferença. Tal fato significa a liberdade de expressão e a necessidade de convívio com a multiplicidade. A aceitação do outro, a alteridade, o respeito pela diferença.
No cenário jurídico, o emprego desta expressão “melhor doutrina” é, assim, apenas o reforço do autoritarismo, da imposição de determinada argumentação jurídica sem a mínima perspectiva, ao menos, de pesquisa em novas concepções. É uma tentativa de sedativo para o insurgente a fim de acomodá-lo de qualquer resistência a um modelo de dominação e exploração vigorante, e um relaxante para o conformado, acrítico, que não precisará ter nenhum peso de consciência.
Em regra, a dita melhor doutrina é aquela que se firmou no consenso dos confortavelmente aquinhoados com os beneplácitos de uma sociedade desigual. E ela existe exatamente para atender este ajeitamento e justificar a legalidade, a juridicidade e a necessidade de ordenação política como forma de tranquilidade e paz social. Só que se trata de uma perspectiva não plural e por isso antidemocrática. A retórica eficaz deste discurso jurídico e sua disseminação, é que faz dele o suposto prosar “verdadeiro” e “melhor”, e que no fundo serve para a mantença do status dominante.
FONTE: BLOG do Denival