O cenário
De um lado, a ilha de Manhattan. De outro, uma favela em um morro na selva de pedra brasileira por excelência: São Paulo.
As personagens
De um lado Caroline Giuliani. De outro, uma Diarista. Essa, desempregada, mãe de 10 filhos, casada com um desempregado, e ainda dividem o barraco com um genro e uma neta; aquela, estudante da Universidade de Harvard, uma das mais conceituadas universidade do mundo.
Os crimes
Na quarta-feira passada (em 04/08/2010), Caroline Giuliani foi presa em flagrante, por ser detectada pelas câmaras de vigilância de um estabelecimento comercial, furtando cosméticos de grifes internacionais. Na semana retrasada (em 30/07/2010), a Diarista desempregada foi presa por tentar furtar 10 bermudas e 02 sapatos de um supermercado. Os cosméticos, com certeza, seriam para aplacar a frívola vaidade de Caroline. As bermudas e os sapatos, sem dúvidas, seriam para agasalhar os 10 filhos que a Diarista possui, e calçar pelo menos 02 deles. O valor estimado dos bens subtraídos por Caroline é de R$ 200,00. E o valor estimado dos bens subtraídos pela Diarista é menor do que R$ 100,00. Em ambos os casos, trata-se de tentativa de furto.
O árbitro
Em Manhattan, um sobrenome. Em São Paulo, a personificação de Themis: uma juíza (com “j” minúsculo mesmo). De acordo com a notícia veiculada no site do jornal New York Post, “depois que os funcionários perceberam de quem se tratava, resolveram não prestar queixa caso ela pagasse os produtos”. Caroline foi levada para a delegacia de polícia e liberada rapidamente, pois é óbvio que os produtos foram pagos e o inquérito arquivado. Em São Paulo, a Diarista foi presa em flagrante, e foi arbitrada a fiança, em razão da natureza do delito cometido. Liberada a Diarista, escreveu uma carta para Themis dizendo que era pobre, que ela e o marido estavam desempregados e que por isso não poderia pagar R$ 300,00 de fiança para ficar em liberdade. O que a juíza fez? Expediu mandado de prisão para a Diarista pelo não pagamento da fiança.
A “cegueira” de Themis
A ironia do destino em Manhattan, é que foi justamente o pai de Caroline, o promotor e ex-prefeito de New York, Rudolph Giuliani, que implantou a política criminal de tolerância zero, partindo da matriz teórica da The Broken Windows Theory, quando à frente da prefeitura da cidade, para combater a criminalidade urbana, justificando que “quem rouba um ovo, rouba um boi”. Ou seja, somente combatendo os pequenos delitos é que se conseguirá prevenir os grandes. Logo, pela tentativa de furto praticada por Caroline, ela deveria ficar presa, pois quebrou a janela que não deveria quebrada (a ordem social). Mas isso nem chegou ao conhecimento de Themis, e também não chegará pelas vias legais, pois nesse caso, abre-se uma exceção nos termos: - tu sabes com quem está falando?
Já em São Paulo, a juíza não mediu esforços para manter-se cega e levantar a espada e Themis, não querendo ver o que está diante de sua própria face. Ou melhor: fingir que não vê. Preferiu deixar a venda cobrindo os olhos para não ver o sangue derramado pela espada empunhada. Aplicação total da The Broken Windows Theory e da política criminal de tolerância zero, que Loïc Wacquant, nas obras “Punir os Pobres” e “As Prisões da Miséria”, comprova, empiricamente, o fracasso da política criminal de Giuliani em solo americano e em solo inglês. Imaginem só, se Wacquant realizasse a pesquisa no sistema de justiça criminal brasileiro!
Como diria Jacinto Coutinho sobre isso: estamos diante de uma “incarceration mania”, nessa passagem do welfare state (que sequer saiu do papel) para um Estado Penal legalista e impiedoso (juridicamente falando). E se se está em um Estado Penal, está-se diante da guerra. E a guerra é sempre assim: uns contra os outros. E o problema se agrava quando lobos vestem peles de cordeiro, e a guerra se resume a nós contra eles. E eles, são os indesejáveis. São os outros. E se são os outros, não são como nós. Nesse ínterim, o maniqueísmo alimentado pelo labeling approach praticado “legalmente” (como adoram os paleopositivistas) pelos “justiceiros da sociedade”, faz com que a longa manus do Leviatã seja forte, impiedoso e injusto: prisão para a miséria.
A sorte da Diarista em São Paulo, foi que um Advogado (provavelmente cansado de ver triunfar as barbaridades revestidas de legalidade nesse país), que estava na delegacia em que ela foi presa, viu o que estava acontecendo e de pronto, fez um pedido de liberdade o qual foi concedido no outro dia. O destino da Diarista foi ter sido “encontrada” por esse Advogado, e não ficar ao revés da Defensoria Pública (que deveria ter uma estrutura como o MP, possibilitando um atendimento eficaz para todos aqueles que necessitam), pois poderia ficar presa respondendo o processo por mais tempo do que se condenada fosse. E esse, infelizmente, é o cenário do sistema de justiça criminal brasileiro: seletivo, estigmatizador e excluidor.
Mas, enquanto a corrupção e o crime organizado não forem prevenidos ou reprimidos de acordo com os ditames legais respeitando as garantias fundamentais, Themis continuará piscando o olho para quem tiver po$$e$, e continuará mandado para o # os #iseráveis.
À maneira de Saramago: de quem é a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam?
Prof. Matzenbacher