domingo, 5 de abril de 2009

"Brasil nunca economizou violência para disciplinar" - Entrevista SERGIO ADORNO

Caros,
para aqueles que se interessam pela Criminologia, abaixo, segue uma entrevista com o Prof. Dr. Sergio Adorno, sociólogo e estudioso da violência no âmbito coletivo das relações sociais. 
Boa semana,

Prof. Matzenbacher

"Brasil nunca economizou violência para disciplinar"

 
´Uma parte da história da humanidade é uma história social e política da violência´, analisa o sociólogo Sergio Adorno, que coordena o Núcleo de Estudos da Violência da USP. No Brasil, assim como no mundo, a violência não é um fenômeno uniforme. Ela adota diversas modalidades ao longo da História, assumindo formas tradicionais, verificadas desde a colônia, como por exemplo, furtos, roubos até as mais sofisticadas. No mundo contemporâneo, cabe ao Estado o monopólio da punição, da chamada violência coercitiva.

O homem pode ser considerado violento por natureza?

Dificilmente trabalhamos com a idéia de que o homem seja, por natureza, violento. É possível encontrar na literatura quem defenda a idéia de que a agressividade é um instinto natural, e que a civilização, de alguma maneira, teria um papel de domesticar este instinto. Em geral, nós, cientistas sociais, temos sempre como foco o coletivo. Tentamos entender em quais condições a violência é um dado da realidade, e como é controlada institucionalmente e de modo legal.

Como se deu a construção do fenômeno ao longo da história brasileira?

Partindo da sociedade brasileira, podemos perceber que a violência não é um fenômeno recente. Desde a história colonial existe a violência, forma de ação na qual uma ou mais pessoas tentam impor a sua vontade contra terceiros, utilizando como meio o uso ou a ameaça da força. São conflitos em relação à propriedade, nas relações de gênero e de classe. Ao invés das pessoas negociarem, dialogarem, elas se apossam de meios da força, ameaçando ou usando mesmo de fato a violência para impor ao outro a vontade própria. Ao longo da história é possível perceber que, uma parte da história da humanidade é uma história social e política da violência. No Brasil, isso não acontece diferente.

Como o senhor analisa isso?

Basta observar a história colonial brasileira para perceber o modo como as mulheres eram tratadas nas grandes propriedades e nas fazendas. Mesmo nas residências urbanas, o modo como as crianças eram tratadas, os escravos, os trabalhadores domésticos. Nunca se economizou violência para disciplinar corpos, comportamentos, mentes e desejos, então, há uma história da violência. Vamos pensar também sobre uma história social da violência no Brasil, como a quantidade de rebeliões populares que foram sufocadas com o uso de força física, muitas vezes, descomunal. Algumas manifestações de rebeldia em relação à arbitrariedade dos poderosos locais, o uso de exércitos particulares para vingança de famílias.

Quando este quadro começou a mudar?

É muito recente a percepção de que a violência é um problema social. Por exemplo, quando as mulheres, crianças e escravos eram maltratados, e os movimentos reprimidos, o uso da violência era considerado normal, natural. Somente há cerca de 30 anos a violência passa a ser percebida como um problema. Passa a ser vista, não como uma forma de disciplina, mas como uma forma de opressão, de mutilação do corpo das pessoas. Ou como uma forma de agressão à sua integridade física e psíquica e, sobretudo, aos direitos humanos.

Em que contexto sociocultural ocorre essa mudança?

Esta percepção coincide com uma série de fatos que aconteceram na sociedade brasileira. Uma delas, a transição democrática, quando as pessoas começam a denunciar as atrocidades do regime autoritário e, com isso, passam a perceber que a violência não é uma solução, mas um problema. Ao mesmo tempo em que ocorre a transição para a democracia, existe uma enorme explosão de conflitos na sociedade brasileira, motivados pelo crescimento do crime, sobretudo do chamado crime violento associado ao narcotráfico de drogas. Isso provocou reações violentas também do aparelho repressor do Estado. A polícia sai matando indiscriminadamente.

Que outros fatores mais se conjugaram?

No mundo inteiro existe um recrudescimento de conflitos com desfechos violentos. Podemos pegar como exemplo os conflitos étnicos, multirraciais e religiosos, a chamada questão do terrorismo, além da questão do crime organizado que tem bases internacionais. E, por fim, há uma enorme explosão de conflitos das relações interpessoais, envolvendo conflitos de gênero, entre casais, vizinhança e de gerações. O que é contemporâneo, primeiro, a percepção de que a violência é um problema; e, segundo, o crescimento acentuado desta diversidade de violência.

Como o senhor avalia o discurso recorrente na sociedade de que a violência vem das periferias pobres?

Não posso pensar o mundo dos bairros da periferia divorciado do resto da sociedade. Assim, o problema da violência está dentro de casa. Quando eu me sensibilizo com os problemas que um trabalhador na minha casa tem em relação aos filhos, à escola, ao medo legítimo que essas trabalhadoras têm, como todos nós temos, de que os nossos filhos se envolvam com o crime.

O que dizer da violência que vem das classes média e média alta e dos países desenvolvidos?

Para nós sociólogos, o problema é entender um caso específico, como socialmente representativo de um estado de espírito da sociedade. No caso do austríaco (Josef Fritzl) que aprisionou, estuprou e cometeu uma série de atrocidades contra a sua filha. Claro, do ponto de vista psíquico, se pode dizer que é um indivíduo com desvio de personalidade dentre outras características. Do ponto de vista sociológico, a pergunta é sempre a seguinte: esta situação se repete? Na verdade, o que tenho a contar não é o que causou isso, mas que estado de sociedade é essa que permite o acontecimento deste tipo.

À luz da Sociologia, estes casos não podem ser vistos isolados?

É claro que é possível singularizar estes casos, mas do ponto de vista sociológico, essa singularidade só tem sentido se ela for entendida como expressão de uma época. O que me interessa sociologicamente é a reação da sociedade. Se as pessoas agem com uma certa indiferença achando que aqui nunca vai acontecer um fato como este, isso é preocupante.

Como a sociedade reagiu?

Acho que houve um impacto muito grande e a mídia teve um papel importante ao dar repercussão ao fato. É claro que, ao analisar as reações, é preciso tomar muito cuidado para não causar um pânico social. Como por exemplo, todo pai passar a ser suspeito de ser lesivo às suas filhas, este pânico que não pode acontecer. É preciso que a gente não experimente uma situação de anestesia moral, caso isso aconteça, o próximo passo é o campo de concentração.

Qual o papel da punição hoje?

O papel da punição contemporânea é evitar que os fatos se repitam, assim como acontece com os atos terroristas. Toda a condenação dos criminosos durante a Segunda Guerra Mundial não aconteceu porque a gente queria uma vingança. O que se queria era uma encenação pública de que acontecimentos daquela natureza não podem se repetir nunca mais na história.

Pode-se dizer que a violência é uma condição urbana?

Não existem estudos conclusivos a respeito do que causa a violência. Em primeiro lugar, não existe uma única modalidade de violência. Hoje, no Brasil, existe aquela criminalidade tradicional, como o furto, roubo, crimes contra o patrimônio e as fraudes que acontecem desde a Colônia. Existe também outra mais recente, ligada ao crime organizado, tráfico de drogas, contrabando e lavagem de dinheiro que não é uma criação brasileira, está no cenário internacional. Existem outras como ações de esquadrões da morte, linchamentos e violência policial. Podem ter relação ou não com o chamado crime urbano, mas não necessariamente. Devemos levar em consideração que as relações pessoais estão conflituosas e convergindo para desfechos fatais. Há também a impunidade.

De que forma as condições de vida urbana contribuem para aumentar a violência?

O anonimato é característico das grandes cidades, as ruas vazias e a falta de proteção, passando a idéia de que as pessoas circulam por ambientes desconhecidos. Nas grandes cidades existe uma fraqueza da presença das instituições. Não há número adequado de policiais ou de postos policiais. A justiça é vista como inoperante, porque os crimes crescem mas não são punidos.

Qual o papel do Estado no sentido de amenizar estes conflitos que geram um medo coletivo?

As sociedades modernas, e nisso incluo a brasileira, nasceram com o pressuposto de que o Estado é que deve ter o monopólio da chamada violência coercitiva. Antes das sociedades modernas, os conflitos interpessoais ou mesmo entre classes eram resolvidos pelo uso da força. O perigo deste modelo é que os mais fracos estão condenados à morte, ao desaparecimento. O Estado tem este monopólio não para uso próprio, mas em benefício do equilíbrio de poder entre os diferentes cidadãos ricos e pobres, homens e mulheres.

Mas não é o que acontece atualmente?

Estamos vivendo numa sociedade na qual o Estado não está cumprindo a tarefa de deter o monopólio da violência. Daí essa história de gangues, milícias e quadrilhas que disputam com o Estado o controle social, isso é um problema grave. O Estado acaba abrindo mão da sua tarefa de pacificar a sociedade. O que se vê, mundo afora, e em algumas sociedades de civilização ocidental, capitalista é que o Estado já deteve o monopólio da violência, mas isso não garante, necessariamente, uma sociedade pacificada. É o caso da sociedade norte-americana. Os Estados Unidos têm o controle territorial da violência, mas não impede que esses garotos matem uma dúzia de pessoas numa única operação.

Como é a situação no Brasil e na América Latina?

O problema aparece em sociedades como a brasileira, particularmente na América Latina e na África, quando o Estado nunca deteve o monopólio e convive com poderosos mecanismos que competem com o Estado no controle social, o crime organizado, por exemplo. Em alguns países da América Latina, as taxas de homicídios são altas como na Venezuela, Brasil, México e El Salvador. Chile, Argentina, Uruguai e Paraguai apresentam baixas taxas. Muitas dessas taxas de criminalidade estão associadas com o tráfico internacional de drogas, muito forte no Brasil, México e Colômbia.

Qual o maior problema na América Central?

O problema da América Central, além das drogas, são as gangues, sobretudo os jovens que emigram de países como Guatemala, Honduras, Costa Rica e vão para os Estados Unidos. Depois de expulsos têm que retornar aos seus países e voltam associados com gangues americanas. Quando se compara a situação das cidades brasileiras com as da América Central acho que a nossa situação não é tão grave. Na América Central se tem a sensação de que os jovens não têm retorno.

IRACEMA SALES
Repórter

FIQUE POR DENTRO
Quem é Sergio Adorno

Graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo, com doutorado em Sociologia pela Universidade de São Paulo e pós-doutorado pelo Centre de Recherches Sociologiques sur le Droit et les Institutions Pénales, CESDIP, França. Atualmente é professor titular em Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e coordenador científico do Núcleo de Estudos da Violência (USP). Seus trabalhos versam sobre os temas: violência, direitos humanos, criminalidade urbana, controle social e conflitos sociais.