MED. CAUT. EM HABEAS CORPUS 96.905-4 RIO DE JANEIRO
RELATOR : MIN. CELSO DE MELLO
PACIENTE(S) : CLÁUDIO HELENO DOS SANTOS LACERDA
IMPETRANTE(S) : LUIZ CARLOS DA SILVA NETO E OUTRO(A/S)
COATOR(A/S)(ES) : SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DECISÃO: Trata-se de “habeas corpus”, com pedido de medida liminar, impetrado contra decisão, que, emanada do E. Superior Tribunal de Justiça, restou consubstanciada em acórdão assim ementado (fls. 275): “PROCESSUAL PENAL. ‘HABEAS CORPUS’. ART. 121, § 2º, II, C/C ART. 14, II, NA FORMA DO ART. 73, § 1ª PARTE, TODOS DO CP. INDEFERIMENTO DO PEDIDO DE ADIAMENTO DO JULGAMENTO. DISPENSA DE TESTEMUNHAS. PREJUÍZO NÃO DEMONSTRADO. INOCORRÊNCIA DE NULIDADE. Não se verificam as nulidades processuais alegadas pelo impetrante - que teriam sido causadas pelo indeferimento do pedido de adiamento do julgamento e pela dispensa de testemunhas - se não houve a demonstração do efetivo prejuízo sofrido pelo paciente, como exige o art. 563 do CPP (‘pas de nullité sans grief’). Ordem denegada.” (HC 61.432/RJ, Rel. p/ o acórdão Min. FELIX FISCHER).
Sustenta-se, nesta impetração, a ocorrência de cerceamento de defesa, eis que, em virtude de restrição imposta pela MMª. Juíza- -Presidente do Tribunal do Júri (uma hora por dia para extração de cópias dos autos), o Advogado do ora paciente – que por este havia sido constituído apenas 06 (seis) dias antes do julgamento - “não compareceu à sessão de julgamento (...), sob pena de exercer defesa falha de seu constituinte” (fls. 06), o que impossibilitou o paciente de “ser representado pelo seu defensor escolhido” (fls. 14).
Alega-se, ainda, ofensa ao direito de defesa do paciente, pois deixaram de ser inquiridas duas testemunhas de defesa arroladas com cláusula de imprescindibilidade, uma das quais justificou a sua ausência com apresentação de atestado médico.
As razões constantes da presente impetração parecem justificar – ao menos em juízo de estrita delibação – o reconhecimento da plausibilidade jurídica da pretensão deduzida nesta sede processual.
Com efeito, observo que o paciente, quando de seu julgamento pelo Tribunal do Júri, manifestou, expressamente, “que gostaria de ser defendido por seu advogado” (fls. 114 – grifei), havendo sido consignado, então, que o paciente em referência era “patrocinado pelo Dr. Clovis Sahione (...)” (fls. 114).
O exame da ata de julgamento não só confirma essa relevantíssima circunstância (a de o ora paciente haver insistido em que a sua defesa técnica, no Plenário do Júri, fosse conduzida por Advogado que ele mesmo constituíra), como também revela que a Defensora Pública então designada postulara o adiamento da sessão, reconhecendo necessário respeitar-se o direito de escolha do réu (fls. 114).
Entendo, na linha de anteriores decisões que proferi no HC 88.085-MC/SP, no HC 91.284-MC/SP e no HC 92.091-MC/SP, dos quais fui Relator, que os fundamentos em que se apóia esta impetração revestem-se de relevo jurídico, pois concernem ao exercício - alegadamente desrespeitado - de uma das garantias essenciais que a Constituição da República assegura a qualquer réu, notadamente em sede processual penal.
É por essa razão que tenho sempre salientado, a propósito da essencialidade dessa prerrogativa constitucional, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, sensível às lições de eminentes autores (FERNANDO DE ALMEIDA PEDROSO, “Processo Penal – O Direito de Defesa”, 1986, Forense; JAQUES DE CAMARGO PENTEADO, “Acusação, Defesa e Julgamento”, 2001, Millennium; ADA PELLEGRINI GRINOVER, “Novas Tendências do Direito Processual”, 1990, Forense Universitária; ANTONIO SCARANCE FERNANDES, “Processo Penal Constitucional”, 3ª ed., 2003, RT; ROGÉRIO LAURIA TUCCI, “Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro”, 2ª ed., 2004, RT; VICENTE GRECO FILHO, “Tutela Constitucional das Liberdades”, 1989, Saraiva; JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, “Direito Processual Penal”, vol. 1, 1974, Coimbra Editora; ROGÉRIO SCHIETTI MACHADO CRUZ, “Garantias Processuais nos Recursos Criminais”, 2002, Atlas, v.g.), vem assinalando, com particular ênfase, que ninguém pode ser privado de sua liberdade, de seus bens ou de seus direitos sem o devido processo legal, não importando, para efeito de concretização dessa garantia fundamental, a natureza do procedimento estatal instaurado contra aquele que sofre a ação persecutória do Estado.
Isso significa, portanto - não constituindo demasia reiterá-lo (RTJ 183/371-372, p. ex.) -, que, em tema de restrição à esfera jurídica de qualquer cidadão (e, com maior razão, em matéria de privação da liberdade individual), o Estado não pode exercer a sua autoridade de maneira abusiva ou arbitrária, desconsiderando, no exercício de sua atividade, o postulado constitucional da plenitude de defesa, pois o reconhecimento da legitimidade ético-jurídica de qualquer medida imposta pelo Poder Público - de que resultem conseqüências gravosas no plano dos direitos e garantias individuais - exige a fiel observância da garantia básica do devido processo legal (CF, art. 5º, LV), consoante adverte autorizado magistério doutrinário (MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, “Comentários à Constituição Brasileira de
Cumpre referir, ainda, que o magistério jurisprudencial desta Suprema Corte já reconheceu ser direito daquele que sofre persecução penal escolher o seu próprio defensor (RTJ 117/91, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI - RTJ 150/498-499, Rel. Min. MOREIRA ALVES, v.g.), consoante se verifica de decisões que restaram consubstanciadas em acórdãos assim ementados: “(...) O réu tem o direito de escolher o seu próprio defensor. Essa liberdade de escolha traduz, no plano da ‘persecutio criminis’, específica projeção do postulado da amplitude de defesa proclamado pela Constituição. Cumpre ao magistrado processante, em não sendo possível ao defensor constituído assumir ou prosseguir no patrocínio da causa penal, ordenar a intimação do réu para que este, querendo, escolha outro Advogado. Antes de realizada essa intimação - ou enquanto não exaurido o prazo nela assinalado - não é lícito ao juiz nomear defensor dativo sem expressa aquiescência do réu.” (RTJ 142/477, Rel. Min. CELSO DE MELLO) “(...) A jurisprudência desse Pretório tem entendimento firmado no sentido de que o réu deve ser cientificado da renúncia do mandato pelo advogado, para que constitua outro, sob pena de nulidade por cerceamento de defesa. ‘Habeas corpus’ deferido.” (HC 75.962/RJ, Rel. Min. ILMAR GALVÃO - grifei).
O outro fundamento do presente “habeas corpus” reside na impugnação à dispensa, pela autoridade judiciária processante, de testemunhas que o ora paciente arrolara com a cláusula de imprescindibilidade, o que teria importado em grave cerceamento ao direito de defesa do réu, que ficou impossibilitado, assim, de exercer, em plenitude, por intermédio de Advogado de sua própria escolha, por ele previamente constituído, o direito de comprovar as suas alegações perante o Conselho de Sentença.
Cabe registrar que o próprio Ministério Público concordara com o adiamento da sessão de julgamento, requerido pelo ora paciente, em face da ausência de testemunha que, arrolada com a nota de imprescindibilidade, deixara de comparecer por razões de ordem médica tempestivamente comprovadas (fls. 114/115).
Tenho acentuado, em diversas decisões proferidas nesta Suprema Corte, a essencialidade do direito à prova (inclusive à prova testemunhal), cuja inobservância, pelo Poder Público,
qualifica-se como causa de invalidação do procedimento estatal instaurado contra qualquer pessoa, seja em sede criminal, seja em sede meramente disciplinar, seja, ainda, em sede materialmente administrativa: “- A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem reafirmado a essencialidade do princípio que consagra o ‘due process of law’, nele reconhecendo uma insuprimível garantia, que, instituída em favor de qualquer pessoa ou entidade, rege e condiciona o exercício, pelo Poder Público, de sua atividade, ainda que em sede materialmente administrativa, sob pena de nulidade do próprio ato punitivo ou da medida restritiva de direitos. Precedentes. Doutrina. - Assiste, ao interessado, mesmo em procedimentos de índole administrativa, como direta emanação da própria garantia constitucional do ‘due process of law’ (CF, art. 5º, LIV) - independentemente, portanto, de haver previsão normativa nos estatutos que regem a atuação dos órgãos do Estado -, a prerrogativa indisponível do contraditório e da plenitude de defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (CF, art. 5º, LV), inclusive o direito à prova. - Abrangência da cláusula constitucional do ‘due process of law’.” (MS 26.358-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO).
A importância do direito à prova, especialmente em sede processual penal, é ressaltada pela doutrina (ADA PELLEGRINI GRINOVER, ANTONIO SCARANCE FERNANDES e ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO, “As nulidades no processo penal”, p. 143/153, itens ns.
O fato é um só: por representar uma das projeções concretizadoras do direito à prova, configurando, por isso mesmo, expressão de uma inderrogável prerrogativa jurídica, não pode ser negado, ao réu - que também não está obrigado a justificar ou a declinar, previamente, as razões da necessidade do depoimento testemunhal -, o direito de ver inquiridas as testemunhas que arrolou em tempo oportuno e dentro do limite numérico legalmente admissível, sob pena de inqualificável desrespeito ao postulado constitucional do “due process of law”: “Prova - Testemunha - Oitiva indeferida por não ter o juiz se convencido das razões do arrolamento - Inadmissibilidade - Direito assegurado independentemente de justificação. - Não pode o juiz indeferir a oitiva de testemunha, sob pena de transgredir o direito límpido que assiste às partes de arrolar qualquer pessoa que não se insira nas proibidas, independentemente de justificação.”
(RT 639/289, Rel. Des. ARY BELFORT - grifei) “Cerceamento de Defesa - Inquirição de testemunhas por rogatória indeferida a pretexto de ter intuito procrastinatório - Inadmissibilidade - Preliminar acolhida - Processo anulado - Inteligência do art. 222, e seus §§, do CPP. - Não é permitido ao juiz, sem ofensa ao preceito constitucional que assegura aos réus ampla defesa, inadmitir inquirição de testemunhas por rogatória, a pretexto de que objetiva o acusado procrastinar o andamento do processo.” (RT 555/342-343, Rel. Des. CUNHA CAMARGO - grifei).
É certo que o não-comparecimento da testemunha ao plenário do júri não se qualifica, ordinariamente, como causa de adiamento da sessão, exceto se a parte (como sucedeu com o ora paciente) houver requerido a intimação de referida testemunha, “declarando não prescindir do depoimento e indicando a sua localização” (CPP, art. 461, “caput”, na redação dada pela Lei nº 11.689/2008).
No caso ora em exame, a testemunha – arrolada com a cláusula de imprescindibilidade – foi regularmente intimada, mas deixou de comparecer à sessão de julgamento, providenciando, no entanto, mediante atestado médico, adequada justificação para sua ausência.
Não obstante o réu, o ora paciente, houvesse insistido no depoimento de referida testemunha (fls. 114), no que obteve aquiescência do próprio Ministério Público (fls. 114/115), a Juíza-Presidente do Tribunal do Júri indeferiu esse pleito e determinou a realização do julgamento (fls. 115).
Esse comportamento processual da ilustre magistrada, ainda que motivado por sua justa disposição de realizar o julgamento em causa, não tem o beneplácito do magistério doutrinário (JULIO FABBRINI MIRABETE, “Código de Processo Penal Interpretado”, p. 998, item n. 455.1, 7ª ed., 2000, Atlas; GUILHERME MADEIRA DEZEM e GUSTAVO OCTAVIANO DINIZ JUNQUEIRA, “Nova Lei do Procedimento do Júri Comentada”, p. 95/96, item n. 54, 2008, Millennium; PEDRO HENRIQUE DEMERCIAN e JORGE ASSAF MALULY, “Curso de Processo Penal”, p. 493, item n. 14.7.5.3.7, 4ª ed., 2009, GEN/Forense; EDILSON MOUGENOT BONFIM, “Júri: Do Inquérito ao Plenário”, p. 174/175, item n. 6.1, 1994, Saraiva; ADRIANO MARREY, “Teoria e Prática do Júri”, p. 341/342, item n. 18.01, atualização de doutrina por LUIZ ANTONIO GUIMARÃES MARREY, coordenação de ALBERTO SILVA FRANCO/RUI STOCO, 7ª ed., 2000, RT; GUILHERME DE SOUZA NUCCI, “Tribunal do Júri”, p. 160, item n. 3.5.2, 2008, RT; JOSÉ RUY BORGES PEREIRA, “Tribunal do Júri: Crimes Dolosos Contra a Vida”, p. 340, 2ª ed., 2000, Edipro; EUGÊNIO PACELLI DE OLIVEIRA, “Curso de Processo Penal”, p. 552, item n. 15.4.3.1, 9ª ed., 2008, Lumen Juris; FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO, “Código de Processo Penal Comentado”, vol. 2/83, 4ª ed., 1999, Saraiva, v.g.), valendo rememorar, no ponto, a lição – sempre valiosa – de DAMÁSIO DE JESUS (“Código de Processo Penal Anotado”, p. 385, 23ª ed., 2009, Saraiva): “Ausência de testemunha. Se arrolada como imprescindível e não comparece, ou é conduzida coercitivamente ou adiado o julgamento. O que o juiz não pode fazer é dispensá-la contra a vontade da parte (...).” (grifei).
Essa orientação doutrinária, por sua vez, reflete-se na jurisprudência dos Tribunais (RT 237/83 – RT 415/80 – RJTJSP/Lex 10/558), inclusive na desta Suprema Corte: “(...) Júri. Testemunha arrolada como imprescindível. Se, intimada, não comparece ao plenário, ou será mandada buscar para o ato, ou será adiado o julgamento. Não pode o juiz, a despeito da oposição do arrolante, dispensar em tal caso o depoimento, sob a consideração de que seria renovação inútil do anteriormente prestado no juízo de admissibilidade da acusação. Anulação do julgamento (...).” (RTJ 92/371, Rel. Min. DÉCIO MIRANDA - grifei).
Sendo assim, em face das razões expostas, defiro o pedido de medida liminar, em ordem a suspender, cautelarmente, até final julgamento da presente ação de “habeas corpus”, a execução da pena de reclusão imposta ao ora paciente nos autos do Processo- -crime nº 95.001.125281-2 (I Tribunal do Júri da comarca do Rio de Janeiro/RJ), expedindo-se, em conseqüência, o pertinente alvará de soltura em favor desse mesmo paciente, se por al não estiver preso.
Comunique-se, com urgência, encaminhando-se cópia da presente
decisão ao E. Superior Tribunal de Justiça (HC 61.432/RJ), ao E. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (Apelação Criminal nº 5.804/2002) e à MMª. Juíza-Presidente do I Tribunal do Júri da comarca do Rio de Janeiro/RJ (Processo-crime nº 95.001.125281-2).
2. Ouça-se a douta Procuradoria-Geral da República.
Publique-se.
Brasília, 03 de abril de 2009.
Ministro CELSO DE MELLO
Relator