O primeiro suspeito de participar do atentado de 11 de Setembro, Abu Zubaida, foi submetido ao afogamento simulado 83 vezes. Na 84ª, confessou. Jalid Sheji Mohamed teve que ser submetido ao mesmo processo 183 vezes. Ao lado, com o bisturi afiado, um cirurgião velava: se fosse necessário, os interrogados seriam submetidos a rápida traqueostomia, como informou o New York Times, em editorial.
Os interrogatórios, realizados pelos órgãos de segurança e das Forças Armadas dos Estados Unidos, fazem lembrar os utilizados pela Inquisição Romana (no século 13) e pela Inquisição Espanhola (a partir do fim do século 15). Revela-se agora que, antes mesmo da prisão do primeiro suspeito dos atentados de 2001, já havia sido elaborado um manual do torturador - semelhante ao Directorium inquisitorum, do famoso inquisidor de Aragon, Nicolau Eymerich, que ocupou, na Inquisição Espanhola, o papel que desempenharia, em seguida, o mais notório ainda Torquemada. O Manual dos inquisidores, com instruções posteriores, ensinava as técnicas de tortura e o emprego dos instrumentos, como capacetes que dispunham de parafusos, a fim de apertar o crânio do "examinado", a conhecida "roda", que espichava os braços e pernas, e o emprego de instrumentos perfurantes. Só a morte, durante o processo inquisitorial, livrava os suspeitos da prisão perpétua (como clemência) ou da fogueira. Torquemada também redigiu suas instruções, e ampliou a competência da Inquisição para além da heresia, a fim de punir pecados profanos, como a sodomia, a poligamia, o adultério - e mandou 2 mil pessoas para a fogueira.
O presidente Obama, pressionado pela opinião pública, autorizou, com alguma relutância, a investigação dos atos de tortura cometidos pelos agentes americanos, com a recomendação de que não sejam identificados os que cumpriram ordens mas, sim, os que as elaboraram e as emitiram. Ao fazê-lo, o presidente lamenta que os Estados Unidos tenham perdido os valores morais, em um dos capítulos mais difíceis de sua História. O presidente se equivoca: os valores morais dos Estados Unidos nunca foram levados em conta pelos seus governos, quando se tratava de estrangeiros. Truman não titubeou em empregar a bomba atômica contra Hiroxima, queimando, na grande fogueira, 80 mil não combatentes. É provável que não conhecesse o efeito devastador do engenho no dia 6 de agosto, quando houve o bombardeio, mas já o conhecia quando determinou o ataque a Nagasaki, três dias depois.
O presidente Kennedy tampouco levou em conta os "valores morais" da América, quando autorizou o emprego da dioxina contra os arrozais e as selvas do Vietnã, determinou o ataque à Bahia dos Porcos e decidiu que João Goulart deveria ser deposto, conforme revelações do Departamento de Estado. Recorde-se que, em 64, os americanos enviaram a Minas e ao Uruguai o agente Dan Mitrioni, a fim de ensinar técnicas de tortura. Que valores morais determinaram a cooptação dos golpistas que mataram Salvador Allende, eleito de acordo com as regras da democracia norte-americana?
A sua história tem sido a do confronto permanente entre os princípios dos peregrinos puritanos, que permanecem latentes em parte de sua sociedade, e as razões do capitalismo imperial, que os negam. Algumas vezes (e este momento parece ser uma delas), cidadãos norte-americanos atuam e reclamam o retorno àqueles valores - mas a plutocracia se rearticula e reconduz o Estado a seu serviço.
Bush, Rumsfeld e Cheney parecem ter sido os responsáveis diretos pela ordem de torturar em Guantánamo, Abu Ghraib e em dezenas de prisões clandestinas em torno do mundo e em navios que ainda vogam, com prisioneiros, no Pacífico. Eles continuarão tranquilos, e só poderão ser punidos pela História - como os que, a serviço dos Estados Unidos, autorizaram a tortura aqui e em outros lugares. Não se fale nas formas particulares de tortura infligidas nas mulheres vietnamitas, com emprego de serpentes, que eram introduzidas em seus corpos. O uso dos animais continua, com os cães de Abu Ghraib e a imobilização dos interrogados em caixas com insetos.
Enquanto Obama fala em valores morais, os bancos voltam a ganhar dinheiro e a desviar, para novas falcatruas, parte do capital que receberam dos contribuintes, conforme investigação do Congresso, em 20 inquéritos e seis auditorias. Pelo menos lá os banqueiros não se sentem tão à vontade diante do Congresso - como se sente, aqui, o senhor Daniel Dantas.